Tindersticks
Ouvir Tindersticks é uma experiência que nunca pode ser classificada como indiferente. Essa banda inglesa, liderada por Stuart Staples, nunca fez sucesso mundial, mas é objeto de culto por seus fiéis ouvintes – como eu mesmo – dadas as belas letras sempre sombrias e enigmáticas e por Stuart ser dono de um vocal inconfundível. Ok, às vezes é semelhante a Nick Cave ou a um Johnny Cash pós-country, mas os estilos são muito diversos para que haja confusão.
Além disso, a banda vai além do tradicional bateria-guitarra-baixo e introduz elementos de orquestra, com belos arranjos incluindo violinos, violoncelos e outros instrumentos de cordas. Muitas das músicas não são sequer cantadas, mas sim narradas, como a bela “My Sister”. Por vezes, talvez para fazer contraponto ao vozeirão de Staples, convidadas femininas complementam e contribuem com as composições como na arrasadora “Travelling Light” (veja abaixo).
Em Travelling Light somos apresentados a um personagem maldito que atravessa problemas existenciais e não consegue mais ver sentido em nada e, sequer, lembrar de mais nada ou ninguém. Em um determinado trecho aparece: “Do you remember, how much you loved me? / You say you have no room in that thick old head / Well it comes with the hurt and the guilt, and the memories / If I had to take them with me I would never get from my bed / There’s a crack in the roof where the rain pours through / That’s the place you always decide to sit / Yeah I know I’m there for hours, the water running down (my) (your)face / Do you really think you keep it all that well hid?”.
O trecho final é de um lirismo exemplar: “tem uma fenda no teto de onde a chuva goteja / este é o lugar no qual você sempre opta por sentar-se / Sim, eu sei que fico lá por horas, com a água escorrendo pelo meu rosto / Você relamente acha que você manteve isso bem escondido?”. De fato, é impossível.
Contudo, para mim, a maior música dessa banda é “A Night In”, que sempre me remete ao universo de Kafka quando ouço – o que já a torna ainda mais atrativa. O seu refrão é um tocante “And I know you’re hurting / And I can’t be there for you / And I know you’re hurting / And I can’t be there no more” emoldurado por uma marcha ao violino e uma leve batida, transmitindo a angústia do abandono. E trata-se de uma música de fuga com os primeiros versos narrando exatamente a situação do fugitivo “had shoes full of holes / When you first took me in / The path that you led / Wasn’t straight to your bed / There’s no cots to sleep in / And you showed me / Who I was running from / As if I had not known all along”.
Acho fantástico esse trecho inicial da música. Em uma tradução livre (e provavelmente falha) seria algo como “tinha sapatos cheios de furos / na primeira vez em que você me abrigou / o caminho pelo qual me guiou / não foi direto para sua cama / não haviam berços onde se dormir / e você me mostrou / de quem eu estava fugindo / como se eu não soubesse o tempo todo”.
Fragilidade, acolhimento, reinício e, o mais interessante, quem dá o abrigo ao fugitivo também é responsável por mostrar a ele de quem ele fugia, ambientando-o devidamente em um universo Kafkiano. Por que fugias então, se sequer sabia de quem? E qual seria o medo que o impedia de olhar para trás. O verso seguinte entrega que de fato sempre soube, mas ainda assim a revelação se fez necessária.
Quando o personagem cita novamente a situação de seus pés (que são amigos da estrada lá fora, como ele fala em outro trecho), ele diz “I had calluses, not sores / And I’d like to keep them / So go turn those sheets / Get back on the street / There’s nothing more I can bring to you / See I’m scared of the door / Afraid of the floor / Well, I’ll go and walk right through / And I’ll show you / Who I’ve been running from / It’s the feeling of waking / And it’s gone”.
Brilhante! Seria algo como: “Tinha calos, não feridas / E gostaria de mantê-los / Então vá, tire esses lençois / volte para as ruas / não tem nada mais que eu possa trazer para você / Veja, eu tenho medo desta porta / Medo deste chão / Bem, então eu vou e vou seguir adiante / E vou mostrar a você / De quem venho fugindo / É do medo de acordar / e ver que se foi”.
A inação e o medo transformando uma vida em fuga. E tudo isso brilhantemente amparado por música e por voz, com muito sentimento, como pode ser visto na apresentação ao vivo, clique aqui para assistir no You Tube, cuja qualidade do som não está tão boa mas que ainda assim é interessante ao relevar o quase-transe em que o cantor está durante a interpretação. Abaixo a versão original da música conforme foi gravada(apenas som).
O Tindersticks tem 8 álbuns lançados entre 93 e 2003. Músicas como Dying Slowly (abaixo), Talk to me – em que o refrão é tão dramaticamente denso que a voz do cantor é sobrepujada pela orquestração e perde-se em meio à música, como mais um lamento – ou Mistakes, ou ainda Tiny Tears e Can Our Love. Todas merecem uma busca no Youtube para serem conferidas ou, melhor ainda, o Tindersticks merece ser descoberto por inteiro.
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