Jeneci, a arte, o espaço público e só eu sou eu
Uma frase com a qual identifico-me bastante foi proferida por Ferreira Gullar e diz “A arte existe pois a vida não basta”. Eu sou daqueles que veem na arte o grande diferencial humano, aquilo que nos faz únicos. O artista é aquele que se expressa ao materializar sentimento e há diversas maneiras de se fazer isso. Marcelo Jeneci, por exemplo, é um artista que se expressa materializando sentimento em sons e palavras. É um compositor, um multi-instrumentista, um músico.
Eu escolhi Jeneci para exemplificar um texto que começa falando sobre arte por ao menos três motivos. O primeiro deles, o mais óbvio, é que ainda anteontem eu estava a três metros de distância dele enquanto ele cantava para uma multidão enlouquecida e cheia de gratidão e satisfação, em um fim de tarde luminoso na Praça Horácio Sabino, na Vila Madalena, em São Paulo. A ideia era celebrar os 460 anos da cidade, comemorados no sábado. E foi exatamente no sábado – véspera do show surpresa – que Jeneci avisou que o tal show ocorreria. Segundo ele nos contou, tudo foi organizado em algumas poucas horas, entre a ideia, a liberação do uso do espaço público envolvendo advogado e uma ida a delegacia, a convocação dos músicos que se dispuseram a participar e a divulgação do evento pela página do músico no Facebook.
Pois bem, como as fotos acima comprovam, Jeneci teve ideia e iniciativa e conseguiu reunir algumas centenas de pessoas para ouvi-lo em apenas 24 horas. Vale dizer que o nome do segundo álbum do cantor – com o qual ele está em turnê de divulgação – chama-se “De Graça” e, de fato, está disponível para ser ouvido gratuitamente no site de Jeneci – com patrocínio de empresa de cosméticos. Essa é uma alternativa interessante à indústria fonográfica, que definha, em busca de alternativas inteligentes que sejam gratuitas para o público e ainda assim viáveis para os artistas, tema relevante agora que até o Spotify e soluções similares de música on line tem sido atacadas por gente como Thom Yorke, do Radiohead, expondo a ferida da falta de visibilidade e apoio a músicos independentes.
Mas divago, voltemos ao show da Vila Madalena e no que ele nos trouxe além de boa música em um astral inimaginável para quem viveu o caos das chuvas dos dias anteriores em Sampa. E esse algo mais – segundo motivo da minha escolha por Jeneci – foi a mensagem portada por ele e convidados quanto ao uso do espaço público. Em certo momento, foi dito: “precisamos ocupar o espaço público, o espaço de convivência. Precisamos parar de ter medo das pessoas e fazer com que as pessoas mereçam estar aqui”, ou algo assim. Além da música, um movimento político, mas sem políticos. Um convite para que as pessoas acreditem mais umas nas outras e transformem suas vidas em algo maior do que um mundinho fechado com desejos reclusos e muito, mas muito pouco de convívio com pessoas e, principalmente, com estranhos. Ali éramos centenas de estranhos partilhando um momento mágico. Algo que a arte é capaz de fazer com uma facilidade e uma força que por vezes ignoramos. Jeneci disse a Criolo que há amor em SP. E eu digo que há amor no Brasil todo e que resgatá-lo é preciso.
Finalmente, o último motivo para ter escolhido Jeneci é porque ele, antes de reunir centenas de estranhos em uma praça pública, já tinha percebido a magia que as vidas tão diferentes de cada um ali possuem. Estudantes e professores. Médicos e pacientes. Motoristas e passageiros. Pais e filhos, ali reunidos cada um com seus sonhos, suas expectativas para o futuro, seus anseios e medos, suas histórias de vida. Jeneci é sensível como artistas em geral são e em sua belíssima “Feito para Acabar” ele diz:
“Quantas são
As dores e alegrias de uma vida
Jogadas na explosão de tantas vidas”
Esses versos são poderosos pois ilustram com clareza essa multidão de possibilidades espalhadas em cada um de nós. Cada um pode ser e fazer a diferença que o mundo precisa. Pode também encontrar ou não seu caminho. Pode nem sequer busca-lo. E Jeneci sabe disse tão bem que voltou ao assunto também no novo álbum, de forma leve, na agradável “Só eu sou eu”, em que diz:
“Tem muita gente linda nessa Terra
Nas minhas contas são oito bilhões
Mais eu …
Só eu sou eu
Só eu sou eu
Além de mim não tem ninguém que seja eu”.
O concerto do domingo foi tão intimista, tão singelo, tão fraternal que não foi difícil, ao final, esbarrar com o artista saindo do palco e poder parabeniza-lo, quando ele passou por mim, e ouvir um sincero “obrigado, valeu”. Foi pena que meu “parabéns” não tivesse sido claro o bastante. Era para ele ter significado: parabéns pela sua música, pelo belo show mas, principalmente, parabéns pela atitude e por ter reunido aqui tantas vidas, tantos vocês e eu”.
Publicado originalmente aqui.
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