70 + 40 = Pão (Um Conto da Quarentena)
Havia uma boa quantidade de vírus naquela maçaneta da porta do carro. Como eles haviam chegado até lá não importava muito, o que realmente importava era que quando eu toquei na maçaneta para abrir o veículo minha mão ficou contaminada, e depois o volante do carro, depois o câmbio para troca de marchas, o painel. Quando eu finalmente me lembrei de higienizar as mãos com álcool em gel, os vírus que estavam apenas do lado de fora do meu pequeno automotor já haviam se espalhado por boa parte também da parte interna.
Dali em diante, ao sair para ir ao supermercado comprar itens de higiene, limpeza, alimentos e também os ingredientes para a grande surpresa que eu queria realizar, tive todos os cuidados necessários para que a minha mão já higienizada não voltasse a causar perigo. Usava máscara, não levava a mão ao rosto, mantinha uma rotina de limpeza das mãos com álcool em gel com alguma frequência, mantinha distância de outras pessoas, evitava falar, não entrava nos corredores em que havia mais do que uma pessoa. Obviamente, considerava-me um tanto paranóico, mas era essa, me parecia, a atitude necessária para que eu não arriscasse contrair o vírus e, posteriormente, pudesse infectar aqueles a quem mais amo.
Durante toda a quarentena, começada já havia dois meses, tenho insistido para que meu pai e minha mãe não saíssem de casa. As compras que fazia eram para mim mas também para eles. E já lá se iam várias idas e vindas a padarias, farmácias, açougues, mercados, veterinárias e tantos outros locais, sempre mantendo as precauções necessárias para que, em um descuido, a proteção à qual me propunha saindo por eles não causasse o efeito inverso. Saltar de protetor a carrasco. De filho pródigo àquele que condena.
Naquele dia, no entanto, não comprava apenas para riscar um a um os itens das duas listas de compras. Havia ainda a terceira lista, que continha itens como açúcar de confeiteiro, cacau em pó, cerveja escura, cream cheese, baunilha, iogurte e tantos outros ingredientes com os quais não estava tão habituado. Os ingredientes para o bolo de aniversário. E não era para ser qualquer bolo de aniversário, seria o primeiro bolo que eu mesmo teria que fazer. E não era qualquer aniversário, o meu pai, o pai de meus irmãos, faria então setenta anos logo no dia seguinte.
Este era o cenário, o momento. De um lado, o confinamento nos indicava afastamento físico das pessoas. Por outro lado, meu pai se aproximava de tão importante marco, sete décadas de uma vida intensa, bem-vivida, criando seus três filhos com as dificuldades naturais a um trabalhador de classe média, que só alcançou maiores rendas depois de formado em engenharia elétrica, o que no caso dele aconteceu mais tardiamente, já depois dos trinta anos de idade e ao custo de muitos e muitos dias e noites longe da família.
Vivemos tempos complicados, em que a palavra de ordem é o isolamento físico – muitas vezes confundido e propagado erroneamente como isolamento social. Não é verdade, as pessoas estão se conectando, em alguns casos até resgatando contatos esquecidos. Este isolamento é físico, é um distanciamento de contato, de evitar proximidade entre os corpos das pessoas. Ele é ainda mais importante em se tratando de pessoas em grupos de risco. Minha mãe pertencia ao grupo por conta da sua idade mas era com meu pai, o futuro aniversariante, com quem mais nos preocupávamos. Ele não só pertencia ao grupo de risco, ele praticamente era o grupo de risco. Gosto de brincar que ele preenchia a cartela de bingo do grupo de risco: diabético, safenado, idoso e teimoso.
Eu sempre ouvia isso, enquanto crescia, que à medida que envelhecemos nos tornamos nossos pais e que eles, curiosamente, vão se tornando mais infantis novamente. Parece ser um pouco o caso que esta pandemia está ressaltando. Nós, os filhos, somos capazes de nos adaptar mais facilmente às modernidades e, desta forma, sofrer um pouco menos com uma rotina de muitos dias consecutivos confinados. É verdade que ainda temos manias, mas elas são um pouco mais controladas do que aquelas demonstradas por nossos genitores. Para eles, já aposentados e a princípio sem preocupações, ficar em casa é quase que uma impossibilidade. Teimam. Inventam desculpas esfarrapadas. Dão trabalho. Mas, assim como com os filhos, cabe a nós, os próprios filhos, conscientizarmos nossos pais dos perigos de serem contaminados. Para tão árdua tarefa, usamos de muitas explicações e imagens. Por exemplo, ao ouvir de minha mãe que “nem tem tanta gente infectada assim em nosso bairro” e que, portanto, “sair de casa nem é tão perigoso assim”, usei a imagem de que sair de casa equivaleria a sacar uma carta de um baralho e que, como nos truques de mágica, apenas uma das cartas faria com que ela se infectasse e todas as outras cinquenta e uma cartas significariam que o passeio foi inofensivo. Uma carta contra cinquenta e uma, realmente as chances de infecção não são tão altas – e eu nem sei se essa minha estatística fazia sentido em geral e muito menos especificamente para o bairro em questão. Não importava, o que era realmente relevante era ressaltar o caráter aleatório e o fato de que chances baixas ainda são chances e elas só aumentam se insistimos em sacar várias cartas, várias vezes, durante vários dias. Uma espécie de roleta russa em que cada mão levada ao rosto equivale ao apertar de um gatilho, sem sabermos se a bala estará ou não posicionada para o tiro fatal. Valia também o reforço de que uma vez que um dos dois se infectasse, naturalmente também o outro se infectaria. Tendo os dois saúde frágil, boas chances de não mais curtirem os netos, desfrutarem de nossas viagens de fim de ano, dos bons pratos que eles tanto apreciam servir para a família aos domingos. É nesta hora em que a gente pensa que pode perder nossos pais que a gente apela mesmo, joga pesado, faz o que pode. Com crianças teimosas o medo do bicho-papão às vezes funciona. Com velhos teimosos, infelizmente, não é tão simples assim.
Pois bem, minha missão era impedir que meus pais se infectassem mas, ao mesmo tempo, estava eu no supermercado fazendo compras para fazer um bolo de aniversário e eu não abria mão da ideia de ainda que com distanciamento, levar o bolo que eu mesmo faria até ele e, juntamente com meus irmãos, cantar “parabéns para você” para nosso pai. Haviam riscos neste processo, mas eu tomaria todos os cuidados para que tudo corresse bem.
Terminei de escolher todos os produtos, dirigi-me a um dos caixas para pagamento, paguei, dirigi-me de volta ao carro, guardei as compras no porta-malas, entrei no veículo e infectei-me de novo. As pessoas muitas vezes até se esquecem dele durante o dia, porém o vírus havia ficado à espreita me aguardando aqui dentro do carro. Por mais que eu tivesse tomado todos os cuidados durante todo o processo de compras dentro do supermercado, o vírus estava silenciosa e sorrateiramente esperando pelo meu retorno, espalhado em vários pontos para que no menor descuido eu pudesse movimentá-lo de novo. Aconteceu exatamente desta forma, toquei no volante, depois no aparelho celular que estava no bolso da calça e então também estes se infectaram. Chega a ser ridículo e irritante, mas pouco tempo depois, quase que por hábito, higienizara minhas mãos e, por impulso, limpei também o volante e o câmbio. Sentira-me seguro e confiante, justamente por ser tão atento aos detalhes e precavido. O vírus, insolente, sabia que a invisibilidade e a facilidade em se espalhar jogavam a favor dele e sorria zombeteiro impregnado no bolso da minha calça.
Quando chegara em casa, naquela véspera de aniversário do meu pai, iniciei a atividade mais irritante que a situação sanitária global e as recomendações por conta dela trouxeram: molhei um paninho em cloro diluído em água e fui lavar as embalagens das compras. Item a item, pacote por pacote, em todas as suas reentrâncias, esfregava aquele pedaço de pano purificador, que visava desfazer a camada externa de gordura que protegia os códigos genéticos do temido vírus e assim inativá-lo, torná-lo inofensivo, lixo genético sem função e sem risco. Ele é tão frágil, pensara eu. Basta lavar as mãos com sabão, basta passar cloro ou qualquer outro destes produtos de limpeza nas embalagens que envolvem as coisas que compramos que o vírus se vai, deixa de ser uma ameaça. Porém era a própria rotina que ameaçava, pois exigia uma atenção constante e redobrada, além do enorme tempo investido na outrora simples tarefa de repor os estoques da despensa.
Várias horas já haviam se passado desde que eu saíra de casa, pela manhã, em direção ao mercado. Já era mais do que meio-dia e a fome era uma companheira inquieta. Subi à casa, que ficava no quarto andar de um prédio de apartamentos. Lá chegando, novas rotinas com as quais vamos nos habituando. Limpar os pés em um pano também embebido em cloro antes de dar outros passos para dentro de casa. Depositar carteira, aparelho celular, chave do carro e outros objetos em uma caixinha posicionada logo na entrada, a caixinha da quarentena. Apesar da fome, guardar as compras ou preparar o almoço apenas depois de tomar banho. Antes disso, porém, tinha que fechar a casa e, nesta hora, mão no bolso da calça, vírus na minha mão, mão à maçaneta da porta, mão na chave e eis que o vírus chegou mais perto do que eu gostaria, estava à minha porta, literalmente.
Banho tomado, comida pronta, fome saciada, compras guardadas. Agora era só começar a preparar o bolo de aniversário, o bolo de cerveja escura. O meu pai sempre viajou muito e, desta forma, cultivou em mim esta paixão. Wanderlust, a palavra que simboliza este desejo constante por viajar, é a palavra que tenho tatuada em meu corpo, logo ao lado da minha tatuagem de uma bela magnólia, flor que marcou um período especial de minha vida. Eu falo aqui de viagem pois a escolha do sabor do bolo vem daí. Meu pai sempre falava para a gente sobre um tal bolo de cerveja escura com cobertura de cream cheese que ele sempre comia na sua infância e adolescência, de uma confeitaria que ficava perto de sua casa. A confeiteira, certa vez, havia dito a ele que tratava-se de uma receita belga, de família. A confeitaria, no entanto, fechara já havia vários anos, mas era de lei, sempre que a gente via um bolo de cerveja escura em algum lugar a gente comprava um pedaço para que meu pai pudesse experimentar e dar o seu veredito, que era sempre o mesmo: “é bom, mas não é o bolo da minha infância”. Ele sabia que podia ser só um saudosismo, um aroma do que já não mais há, porém ele nos garantia que a avaliação ia além destes ingredientes secretos, era também o próprio sabor. Segundo ele sempre faltava algo, ora estava doce demais, ora estava seco demais, ora tinha cobertura demais, ora tinha cobertura de menos. Houve até uma ocasião em que viajamos juntos para a Bélgica e lá, de forma despretensiosa, entramos em um café, era um fim de tarde, e no cardápio lá estava “bolo de cerveja escura”… uma receita belga, na Bélgica, tinha tudo para dar certo. Pedimos. Chegou. Ele comeu, exclamou “muito bom!”, e realmente era. Porém, pouco tempo depois, veio o veredito: “é muito bom, mas não é o bolo da minha infância”. Naquele momento, eu me lembrei de uma frase simbólica do poeta Dylan Thomas: “A bola que lancei quando brincava no parque ainda não tocou o chão”. Para mim, esta frase significava que eu não queria perder a essência de quem eu já era quando criança, com meus sonhos e minhas certezas. Para ele, hoje, acho que a frase significava que por mais que a gente acumule anos, e ele amanhã chegará aos setenta, somos as escolhas que fazemos desde sempre, este senhor que experimentava bolos de cerveja na Bélgica era o mesmo que, anos antes, provava bolos de cerveja no Brasil, e era o mesmo que os provou tantas e tantas vezes e os comparou e que podia dizer que aquele pedaço de bolo de cerveja que ele provara quando criança na confeitaria próxima de sua casa nunca acabará enquanto ele pudesse se lembrar daquele sabor, daquelas sensações, daquele momento.
Neste instante da história imagino que o leitor possa até estar se perguntando se é mesmo uma boa ideia fazer um bolo de cerveja escura, pela primeira vez, sendo que tantos e tantos outros bolos de cerveja, tendo sido feitos por tantos confeiteiros mais experientes e tarimbados do que eu, haviam falhado no teste gustativo e afetivo de meu amado pai, o aniversariante que primeiro experimentaria o meu bolo. É verdade, reconheço o risco de fracassar retumbantemente. E nem tenho a pretensão de igualar aquele bolo da infância dele. A intenção é de agradar, de me esforçar para entregar algo que não seja só mais um bolo de aniversário. Não quero simplesmente comprar um bolo pronto. Nem quero apenas encomendar um bolo por aí – até porque o fato de ir buscar um bolo em algum lugar aumentaria as chances de um eventual contágio. Eu quero ter mais controle dos aspectos sanitários ao mesmo tempo em que faço um carinho, dedico o meu tempo e minhas poucas habilidades para levar a ele o melhor bolo de cerveja escura que eu puder fazer. Ouvir mais um “é bom, mas não é o bolo da minha infância” será até um presente, uma confirmação de que meu velhinho continua ali, vivo, íntegro, saudável e capaz de comparar o momento atual com o seu mundo idealizado, das suas memórias mais suaves e prazerosas. E isso não tem preço.
Para mais além do que isso, eu citei anteriormente que a quarentena já havia se iniciado há quase dois meses. Este seria então meu primeiro bolo mas não minha primeira incursão pela panificação e confeitaria. Antes da quarentena eu tinha interesse pelo assunto, porém sempre me apoiava no fato de a vida moderna ser uma loucura, com a rotina de trânsito, longas horas de trabalho no escritório, compromissos sociais noturnos e que também invadiam os fins de semana de tal forma que faziam com que ficar em casa fosse um luxo ao qual eu dedicava poucas horas na semana, transformando o lar em quase que um quarto de dormir super dimensionado com coisas inúteis como cozinha, sala de estar e de jantar, varanda e tantos outros espaços que acabavam imensamente subaproveitados. Era mais a casa dos meus dois gatos do que a nossa casa. Eles sim exploravam cada espaço, também dormiam muito como fazem os gatos, mas ao menos o faziam em cada um dos vários cômodos disponíveis, não se limitando a apenas um deles.
A vida pré-pandemia quase que ocorria exclusivamente fora de casa. A casa era o espaço para repouso, abrigo e reclusão. Mas a ideia de “viver a vida” sempre estava relacionada a coisas que aconteciam em outros espaços. A gente saia de casa para tudo. Para comer pratos bem elaborados. Para ouvir boa música sendo feita ao vivo. Para discutir com os amigos à beira de uma mesa bebericando algo e comendo outros bocados. Com o confinamento recomendado para conter o espalhamento do vírus terminamos por descobrir que todas essas coisas poderiam também ser feitas de dentro de casa. Porém agora para comer pratos elaborados, teremos nós mesmos que nos encarregarmos de os preparar. Porém agora para ouvir música ao vivo teremos que nos conectar diretamente à casa dos artistas usando uma conexão de internet, o que curiosamente dá acesso a mais gente do que os grandes estádios lotados que outrora significavam um grande sucesso de público para o artista e, ao mesmo tempo, nos aproxima, transforma-se em algo mais intimista, mais fraternal. É o paradoxo de ser ao mesmo tempo maior e menor. É um espaço para milhares e ao mesmo tempo para a exclusividade, para apenas os dois lados, fã e artista, trocarem um pouco um com o outro. Tem menos calor, é óbvio, mas não deixa de ser uma experiência nova e fascinante. Para discutir com os amigos também nos apoiamos na tecnologia. A beira da mesa que era antes compartilhada fisicamente nos bares e restaurantes lá de fora passa a ser as várias mesas de cada uma das salas de jantar, das sacadas ou de onde quer que seja que as pessoas, de suas casas, estejam. As ideias que discutimos, as opiniões, os sorrisos, as gargalhadas são todas as mesmas, tão sinceras quanto antes. A verdade é que as coisas se metamorfoseiam mas o que é essencial permanece.
A nova vida que o vírus impôs, esta vida que passou a ocorrer mais dentro de nossas casas, mostrou coisas que às vezes a gente negligenciava. Q ue um bom relacionamento só se fortalece quando somos forçados a estar cada vez mais juntos. Que os gatos são mais companheiros do que a gente supunha e que eles fazem sim muito mais do que dormir. Que a nossa casa pode ser um lar muito mais caloroso se olharmos para ela como mais do que um dormitório. E que a cozinha pode ser um espaço para proporcionar experiências muito maiores do que esquentar a água para o chá ou para aquecer a comida que chegou do delivery. Foi nesta redescoberta das coisas simples e valiosas que aquele desejo antigo de investir um pouco na panificação tomou mais espaço na alocação do meu tempo.
Começou logo na primeira semana em que percebi que ficaria mais tempo em casa do que o habitual. Aproveitei para já incluir na lista de compras farinhas e fermentos para fazer um primeiro experimento. O primeiro pão nem cresceu tanto, o gosto de fermento era evidente e talvez tenha ficado mais seco do que deveria. O segundo pão era de outra receita, com farinha integral e outros grãos. Evoluiu então para um pão de aveia. Seguiu para um pão sovado, mais tradicional e com gosto de infância. Veio a ciabatta. E a cada dois ou três dias essas incursões pelo processo de misturar ingredientes como água, leite, ovos, farinhas, azeite, manteiga, grãos diversificados, misturar, sovar, bater, esperar, bater um pouco mais, deixar crescer, untar formas, assar, foi ganhando mais espaço no meu tempo e no meu coração. Foi a descoberta que calma, paz de espírito, dedicação e carinho são capazes de fazer pães maravilhosos. Foi enriquecedor e deixou marcas profundas em mim.
Tanto foi assim que me deu coragem para arriscar-me a fazer, naquele dia, um bolo de cerveja escura para meu pai. Eu sabia que a minha experiência que aos poucos foi sendo mais bem sucedida com o mundo da panificação não era garantia de que eu teria sucesso em fazer um bom bolo. Mas já não mais podia me furtar do direito de tentar, de acreditar que sim eu poderia entregar algo que agradasse.
A decisão de dedicar parte do meu tempo confinado à panificação não foi motivada só pelo resgate deste antigo interesse. Deu-se também por conta da percepção cada vez mais acentuada de que eu precisava ter momentos reservados para mim. É fato que no confinamento a gestão do tempo complicou-se ao passarmos dias e dias seguidos, em um espaço físico limitado e com tarefas repetitivas. Eu havia conseguido adaptar o meu trabalho de escritório para a minha casa, o que foi bom pois garantiu emprego e renda, por outro lado a minha rotina consistia em ficar sentado, sozinho, em frente a uma tela de computador em um cômodo da minha casa durante todo o dia. Pausava para almoçar os deliciosos pratos que eram preparados com muito amor para mim. As noites e fins de semana consistiam em conversas com amigos, um pouco de televisão ou shows em streaming, cuidar dos gatos, das tarefas rotineiras de limpeza da casa, acompanhar o horrendo noticiário que se resumia a crescimento do número de casos e de mortes, medidas de contenção da pandemia, atitudes irresponsáveis de nossos representantes e mais tantas outras coisas que causavam aflição. Este ciclo com bons e maus momentos ia se repetindo e os dias começaram a ficar cada vez mais parecidos uns com os outros. Este efeito fazia com que eles se acumulassem rapidamente sem que a gente pudesse perceber efetivamente a passagem do tempo. Assim, uma segunda-feira era seguida de outra segunda-feira quase que imediatamente, o fim de semana que separava essas semanas intensas e ao mesmo tempo passageiras pareciam-se com espasmos e pouca pausa realmente traziam. Dias iguais, qualidade do sono se tornando precária, sentimento de impotência e inutilidade aumentando foram os gatilhos que precisaram ser disparados para que a panificação emergisse e encontrasse seu espaço. E foi um milagre.
Essa questão realça como a falta de referências para demarcarmos melhor a passagem do tempo são importantes e afetam nosso estado de consciência. Nesta nova rotina, em que os dias se parecem mais, o tempo parece passar mais rápido. Lembrei-me de uma experiência na qual um pequeno grupo de espeleólogos se programou para ficar um determinado número de dias dentro de uma caverna, sem acesso à luz natural e sem contato direto com pessoas de fora da caverna, para que além de explorarem a caverna também pudessem medir os efeitos do isolamento e da falta de luz natural em seu comportamento. Por perderem a referência da luz do sol e sem relógios disponíveis, eles deveriam controlar seus ciclos de sono. Sempre que considerassem que havia se passado um dia, eles puxariam uma corda sinalizando isso à equipe externa, que então levaria alimentos para mais um dia, mantendo o distanciamento e a ausência de contatos. Quando a quantidade de dias combinada foi atingida, a equipe de apoio finalmente foi até os pesquisadores e sinalizou o fim do experimento. A reação foi de animosidade, de agressividade, já que do ponto de vista de quem havia se isolado ainda não tinham atingido sequer a metade do experimento. Eles já estavam agressivos entre si, irritados e com vários sinais de estresse pessoal e interpessoal. Sua confusão era natural, já que haviam, era fato, puxado a corda apenas metade das vezes que deveriam, mas não porque a experiência estava em seu meio mas porque passaram a ter ciclos de atividade muito maiores do que as vinte e quatro horas de um dia. O primeiro dia de sono foi quase normal, mas a partir daí e sem referências, os “dias” dos pesquisadores passaram a se alongar mais e mais até o ponto de terem passado bem mais de quarenta e oito horas entre uma e outra sinalização de sono. Essa privação de sono, era evidente, também cobrava seu preço, mas o fato de terem dias com as mesmas atividades, sendo repetidas e repetidas à exaustão potencializava essa sensação de que o tempo não passava. Pode parecer paradoxal mas quanto mais tempo temos, menos tempo parece que temos.
De qualquer forma, a panificação entrou em minha vida e era agora hora de avaliar o espaço que a confeitaria poderia passar a ter. Aqueci a cerveja com a manteiga em fogo baixo até que a manteiga derretesse. Peneirei e incorporei os ingredientes secos. Misturei bem até que tivesse uma massa homogênea. Untei a forma e coloquei ao forno. Preparei em uma tigela a cobertura, com iogurte, baunilha, açúcar de confeiteiro e cream cheese. Estava tudo andando bem naquelas preparações e resolvi aproveitar o forno para me divertir com uma massa de pães que havia experimentado e gostado. Fui até a mesa para lá preparar a massa, borrifei álcool para fazer a higienização do espaço e, em uma dessas borrifadas, eis que o gato sobe à mesa de repente e vai álcool em seu olho… e dá-lhe gato correndo e miando pela casa, desespero para ver se havia sido algo mais grave a alívio quando percebi que nada mais fora do que um susto. Gatos são curiosos, nem sempre para seu próprio bem, como já dizia o ditado. Fato é que horas mais tarde o bolo de cerveja escura já estava pronto para ser levado ao refrigerador, mais uma fornada de maravilhosos pãezinhos espalhavam um agradável aroma pelo ar e um gatinho olhava desconfiado com um dos olhos semicerrado para tudo aquilo que acontecia. Dormi feliz sabendo que o dia seguinte reservava uma agradável surpresa para meu amado paizinho.
Chegou então o grande dia, o dia em que meu pai chegava a setenta anos de vida, durante a quarentena. Não havíamos combinado nada com ele relacionado a nos vermos. Então, logo cedo, para apaziguar a ansiedade e ao mesmo tempo não levantar quaisquer suspeitas, usamos a tecnologia para nos conectarmos com ele e já desejarmos felicidades e um ótimo aniversário. Fizemos uma video-conferência, eu e meus dois irmãos, para que eles nos vissem e, talvez ainda mais importante, vissem também seus netos. Já foi um momento especial, com direito a choro de alegria, de saudade, de vontade de estarmos juntos. E de festa, de celebração à vida que a marca dos nossos aniversários vai deixando. É um novo ciclo de dias que se completa e um novo ciclo de dias que têm início.
Desligamos e em seguida eu e meus irmãos nos ligamos novamente. Eles queriam saber se estava tudo certo com o bolo e acertar os detalhes da surpresa que faríamos algumas horas mais tarde, ao final do dia de trabalho. Vamos os três nos encontrar na casa dele. Usaremos máscara, manteremos a distância uns dos outros, mas estaremos lá. Eu levarei o bolo e vou higienizar bem o prato que usarei para apoiá-lo. Usarei luvas para levar o bolo para dentro da garagem da casa dele, aproveitando-me do fato de ter uma cópia das suas chaves e assim poder entrar lá sem a necessidade de ter que avisá-lo de que lá estávamos. Só então quando tudo estiver pronto vamos tocar o interfone e anunciar a surpresa, pedindo para que ele desça. Quando ele chegar, ele vai pegar o palito de fósforo que deixaremos ao lado do bolo, vai acender as velas com os números 7 e 0 que lá também estarão e nós todos vamos cantar “parabéns para você”. Ele vai então cortar o bolo de cerveja escura e comer junto com a mãe. Nós comeremos a outra metade do lado de lá do portão. E sorriremos todos juntos.
Chegou a hora. Em casa estava uma agitação. Gatos correndo feito loucos, talvez pressentindo que em breve sairíamos para encontrar com meus pais. Peguei dois pratos grandes e bonitos. Havia já lavado bem tanto os pratos como a faca usada para cortar o bolo. Cortei o bolo ao meio sabendo que a tradição do primeiro corte estaria sendo quebrada. Era por um nobre motivo, não queria de forma alguma correr riscos de com nosso gesto de carinho poder infectar nossos pais. Como a doença pode ser assintomática e o vírus se espalha rápido e é invisível, melhor agirmos sempre como se estivéssemos infectados. Essa precaução que pode parecer exagerada tem um potencial enorme de salvar vidas. Então seriam dois pratos e o primeiro corte do bolo de cerveja escura que fiz para os setenta anos de meu pai coube a mim. Peguei a chave do carro na caixinha da quarentena, colocamos as máscaras e saímos de casa. A maçaneta da porta, vocês se lembram, estava infectada e, neste processo, acabei tocando tanto ela quanto as chaves com a minha mão direita e infectando também o fundo de um dos pratos que tinham os bolos. Aquilo que eu mais temia estava acontecendo.
Chegamos em frente à casa de meus pais. Aguardei até que os meus irmãos também chegassem. Primeiro chegou um, acenamos um para o outro. Poucos minutos depois também chegou o outro. Saímos dos carros, os três casais e os filhos, todos com máscaras, todos respeitosamente mantendo o distanciamento. Conversamos brevemente mantendo distância. Não era fácil olhar para as crianças, nossos sobrinhos, e não correr para abraçá-los, pegar no colo, jogar para cima, fazer festa e folia, como estávamos habituados a fazer há tão pouco tempo. Não era esse o propósito daquela visita e foi tocante perceber que mesmo eles, ainda tão pequenos, conseguiam compreender que estávamos ali para fazer o vovô um pouco mais feliz. Voltei ao carro e vesti as luvas. Peguei um dos pratos e cortei aquela metade do bolo em vários pedaços, um para cada um de nós, os que ficariam do lado de fora, os convidados daquela festa surpresa. Peguei a chave da garagem da casa dos meus pais e abri a porta. Com elas levei o prato com a outra metade do bolo de aniversário, juntamente com as velas, a caixa de fósforos, uma faca, garfos e dois pratinhos para dentro. Peguei um banquinho que sempre ficava por ali e o improvisei como mesa. Pronto, o cenário dentro da garagem estava armado. Infelizmente, a luva tocou o fundo do prato deles e era aquele o prato que carregava em seu fundo um punhado de vírus. Quando eu arrumei as coisas todas no banquinho, um outro tanto de vírus conseguiu passar para o cabo da faca. Daquela forma, em silêncio e sem qualquer intenção, eu levei o inimigo para dentro da casa de meus pais e de uma forma em que naturalmente eu acabaria por fazer com que ele chegasse às mãos do meu pai.
Sem fazer qualquer ideia de que isso estivesse acontecendo, até mesmo pelos cuidados que todos estávamos tendo, continuamos com o plano. Sai da garagem, voltei a fechar a sua porta. Fui então até a campainha e toquei. Atendeu minha mãe, que também não sabia de nada. Disse a ela, rapidamente, que tratava-se de uma surpresa para o pai, que estávamos todos aqui em baixo e que era para ela trazê-lo para cá que iríamos cantar parabéns. Ela assentiu e desligou. Ficamos ali, todos esperando pela chegada deles.
A luz da garagem voltou a se acender, ouvimos uma das portas do andar de cima do sobrado se abrir. Ouvi meu pai dizer “que legal, não estou acreditando” já com uma voz levemente embargada em lágrimas. Minha mãe também parecia chorar. Foi difícil para mim, mais sentimental que meus irmãos, segurar o choro e também vi lágrimas começando a escorrer pela lateral do meu rosto. Estava dando tudo certo.
Eles desceram a escada lateral e quando finalmente se colocaram de frente para a gente gritamos juntos, como se até mesmo o instante exato tivesse sido acordado, “parabéns, pai” e suas variantes que substituíam “pai” por vovô ou pelo nome dele. Foi um uníssono, acompanhado de palmas efusivamente batidas. Nessa hora meu pai já não segurava o choro. Conversamos um pouco. Ele queria saber como a gente tinha organizado aquilo, como tinha sido em todos os seus detalhes, reforçava que não fazia ideia, olhava para a minha mãe indagando se ela sabia ou não sobre tudo aquilo. É mais ou menos assim que sempre acontece quando as festas surpresa funcionam, seja em tempos de quarentena ou não.
Foi só depois de alguns minutos que eu chamei a atenção dele para o bolo que estava ali posicionado há alguns metros dele. “Pai”, disse eu, “eu fiz um bolo de cerveja escura para comemorarmos juntos os seus setenta anos. Eu sei que se tivesse que ter um bolo teria que ser esse. Foi o primeiro bolo que eu fiz e tenho certeza que não vai ser tão bom quanto os que o senhor sempre come e muito menos ainda tão bom quanto aquele bolo mítico da sua juventude… mas este é o meu presente, a minha tentativa de colocar o nosso amor pelo senhor em algo que eu possa te entregar. Espero que esteja ao menos saboroso.”
Ele agradeceu, parecia não acreditar no que estava acontecendo. Perguntou mais de uma vez se era realmente eu quem tinha feito. Agradecia. Chorava de emoção. Dirigiu-se então para perto do banco que servia como aparador. Apanhou então a faca. Sua mão lambuzou-se de vírus. Dissemos a ele que tinha que primeiro acender as velas. Foi então o palito de fósforo que se impregnou do disseminador de doenças. Riscou o palito e o acendeu. Encostou o palito no pavio das velas. Também pegaram fogo. O palito continuou aceso por mais alguns segundo enquanto todos nós, do lado de fora, começamos a cantiga dos “parabéns para você” acompanhadas de novas palmas para dar o ritmo da tão tradicional canção. O fogo do palito percorreu quase toda a madeira, aniquilou os vírus que ali repousavam mas também queimou a ponta dos dedos do meu pai. Ele nada disse mas aquilo, aquele fogo que aos poucos se apagou em suas mãos serviu para salvá-lo da contaminação, pois quando o fogo atingiu seus dedos o nosso pai se assustou e em um rápido movimento acabou por esbarrar e derrubar da banqueta a faca e os pratos. Eles não se quebraram, mas aquilo o obrigou a antes de seguir cortando o bolo, ter que passar água nos utensílios infectados. Foi por muito pouco, o vírus chegou a estar em suas mãos e também na faca que seria logo em seguida usada para cortar o bolo, mas foi o fogo, que tem o seu ardor tantas vezes associado à vida, que precisou apagar-se para permitir uma vida ainda mais longa para aquele que é tão especial para nós. Assim foi, ele foi até a torneira que ficava na parede, lavou as mãos e a faca e não mais havia vírus próximo a ele. Voltou então para perto do bolo, sacou outro palito de fósforo, voltou a acender as velas que já haviam se apagado, com os olhos ainda marejados de emoção, disse “Filhos, muito obrigado por tudo, muito obrigado por este momento que já é inesquecível. Chego aos meus setenta anos hoje e não sei quantos anos mais vou viver. Mas não importa, vivi de maneira intensa a vida que tenho ao meu dispor. Tenho e tive amor, tenho e tive pessoas queridas próximas de mim e isso é tudo o que importa. Vou agora assoprar as velas e vou desejar que a vida volte ao normal para todos nós e que tenhamos novas oportunidades de nos abraçar sem medo de colocar as nossas vidas em perigo. Mas não é porque meus braços não estão em volta de vocês que eu não possa dizer que este aniversário teve um calor humano inigualável, pois tão mais intenso é percebido o calor quanto mais intenso for o frio ao seu redor. Eu já havia ficado feliz com a nossa ligação de hoje pela manhã. Mas muito obrigado por estarem aqui, diante de mim. Vê-los sem uma tela entre nós é um presente. Obrigado por este bolo encantado, o meu favorito. Obrigado por fazerem deste um momento especial. Afinal, eu esperei setenta anos para chegar até aqui.” E rimos.
É claro que vocês podem estar curiosos para saber se o bolo estava gostoso. Eu posso afirmar que, para mim, que não comi o bolo da infância do meu pai, estava sim muito bom. Mas não vou dizer o que ele falou para mim naquele dia. Só vou dizer que o que eu ouvi me fez acreditar que eu posso tudo, posso inclusive seguir meus sonhos e talvez passar a fazer coisas que eu acreditava que não eram para mim. Como pães.
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