Três homens, três mulheres
Assisti nas últimas três semanas a três clássicos do cinema: Luzes da Ribalta (Limelight, 1953), produzido, escrito, dirigido e estrelado por Charles Chaplin e Claire Bloom, Casablanca (1943), filme de Michael Curtiz com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman e o francês Um Homem, Uma Mulher (Un Homme et une Femme, 1966), de Claude Lelouch, com Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée. Para mim foram, na verdade, as histórias de três homens e três mulheres.
O palhaço e a bailarina. O dono de bar e a esposa do ativista político. O piloto e a roteirista. Três casais de personagens diferentes, com histórias de vida diferentes, vivendo histórias mais ou menos semelhantes. Histórias de amor, de desencontros, de decisões difíceis para manterem-se juntos ou para afastarem-se, sempre envolvidos em grandes dilemas. Grandes personagens em ótimos filmes, povoados por seres humanos reais e complexos.
Chaplin é conhecido, principalmente, por seus filmes mudos, por suas comédias, por seu personagem Vagabundo. E, de fato, é um ícone. Mas seus filmes falados revelam um autor inspirado, capaz de construir boas histórias com longos e belos diálogos. O discurso final de O Grande Ditador é um excelente exemplo disso, mas praticamente tudo o que sai da boca de Calvero, o palhaço à beira da aposentadoria vivido por ele em Luzes da Ribalta, é também inspirador e digno de nota. Que personagem fascinante, que busca, na velhice, mostrar-se capaz de ainda entreter seu público, de provocar risadas genuínas – e não ensaiadas, de ser original e criativo. Seu treinador de pulgas, descoberto em sonhos, é impagável. Calvero, certo dia, salva a jovem Terry de uma tentativa de suicídio e a leva para sua casa. Para evitar que ela seja despejada pela severa senhoria do imóvel em que mora, fingem um casamento. O que segue é a genuína preocupação de Calvero pela vida de Terry, para que sua juventude não seja desperdiçada, para que seus sonhos tenham chance de se tornarem realidade. Vemos, dia a dia, a devoção ao próximo simplesmente por ser uma vida que não deve ser interrompida. Terry, a princípio reticente e desconfiada, rende-se ao carinho paternal de Calvero e, aos poucos, recupera a motivação de viver. Tudo isso é registrado com uma delicadeza exemplar. O que acompanhamos é o sagrado nascimento do amor entre duas pessoas. Junto com o amor, renasce em Terry a confiança em si e a retomada de sua carreira. O amor de Calvero a recupera para voltar a dançar. Mas o seu sucesso transforma-se em insegurança altruísta para ele, que sente-se velho e temeroso de tornar-se um peso que a atrapalhe de seguir em frente. Calvero deixa-a e desaparece e ao mesmo tempo ela reencontra-se com uma antiga paixão. Chaplin aproveita esse enredo um tanto melodramático para aprofundar-se em temas caros como o valor à vida, o papel da arte e do artista na sociedade e o real significado do sucesso profissional, dentre outros. E a trilha sonora é absolutamente magnífica! Chaplin era um artista tão completo que até mesmo da composição da trilha ele participou, juntamente com Raymond Rasch e Larry Russell.
OK, falar de uma trilha sonora marcante em um filme é uma ótima deixa para passar a falar de Casablanca e sua As Time Goes By, canção clássica e já interpretada por nomes como Frank Sinatra, Nat King Cole e Billie Holiday que é, certamente, a alma do filme. A letra da música diz “And when two lovers woo, they still say, <I love you>, on that you can rely! No matter what the future brings, as time goes by” e, de fato, esse é o espírito da história que presenciamos ao ver o filme. Dois amantes que se reencontram, o sentimento ainda está lá, mas a vida (o futuro) reservou tantas surpresas e tantos descaminhos que não há mais espaço para que ele seja novamente vivido. É um filme romântico mas triste e acho genial que tenha se tornado um clássico do gênero, ganhando inclusive o Oscar de Melhor Filme.
Casablanca retrata a cidade marroquina que dá título ao filme como um refúgio, um oasis no deserto da segunda grande guerra, buscado por europeus refugiados pelos nazistas e que almejam, de alguma forma, alcançar Lisboa para poder evadir-se para a América. Um detalhe que me chamou a atenção é que o filme foi rodado em 1942/43, ou seja, em pleno período de guerra! Ainda que tenha sido filmado em locação, a escolha do tema foi oportuna. Hoje em dia, Hollywood em geral espera que os conflitos armados tenham sido resolvidos há alguns anos para retratá-los em suas películas.
O filme tem um pano de fundo político e o divertidíssimo personagem do chefe de polícia marroquino é um bom exemplo disso: um ser político, inteligente e interesseiro, procurando sempre subterfúgios para não se complicar e, se possível, se dar bem. A história do filme retrata o cínico e frio Rick (Bogart), detentor do bar mais badalado da cidade, durante a visita do importante ativista político Laszlo, perseguido pela Gestapo e, mais especificamente, pelo major Strasser. Porém, para o filme, o que importa é que Laszlo está acompanhado de sua bela esposa Ilsa (Bergman), cujo passado tem ligações intensas com os motivos da frieza, distância e cinismo de Rick. Diferente do filme de Chaplin,aqui não observamos o nascimento nem da paixão e nem do amor entre os personagens, mas as belas atuações de Bogart e Bergman nos convencem, antes mesmo do primeiro olhar entre eles e do flashback mostrando como se conheceram, de toda a intensidade que os une. Porém, a urgência das circunstâncias não permite uma reunião, a sobrevivência e a honra entram em jogo, o amor tem que esperar – ou ser ignorado. Talvez por isso o filme tenha sido tão aclamado, pelo que poderia acontecer e não acontece. A sublimação, a entrega, o sentimento puro de querer ver bem, sem egoísmos. Rick é um personagem fascinante. Tanto que ao terminar o filme fiquei com vontade de ser mais Rick em minha própria vida. Mas isso é idealizar além do que posso. Tampouco dá para ser Calvero, Chaplin é genial demais para servir de alvo.
Bom, já que não dá para ser Rick e nem Calvero quem sabe dá para ser Jean-Louis Duroc, o personagem ultra-romântico vivido por Jean-Louis Trintignant (do recente Amour) no filme Um Homem, Uma Mulher. Afinal, o próprio título do filme já deixa claro que se trata de personagens ordinários, que poderiam ser qualquer um de nós, eu ou você. Mas, neste caso, sei que não sou assim… O filme narra como dois viúvos, com filhos pequenos estudando no mesmo internato, se conhecem, passam tempo juntos e, inevitavelmente, se apaixonam. E é esse o sentimento que vemos aqui. É um contraponto interessante a Luzes da Ribalta, em que vemos nascer o amor entre Calvero e Terry. Aqui, vemos nascer o encantamento entre Anne e Jean-Louis, o interesse de um pelo outro, a curiosidade natural que esse interesse provoca, dos pequenos aos grandes gestos de sedução. Tudo muito natural e crível, como o bom cinema francês é mestre em nos presentear. A cena final do filme é romântica, bonita, real e antológica.
Acho que, novamente à sorte do azar, a combinação desses três filmes é bastante interessante. Temos o nascimento de uma paixão, o nascimento do amor e um amor já estabelecido. Três momentos diferentes das vidas dos casais, com destinos também diferentes. Calvero e Terry são afetados pela inevitabilidade fatal de todas as vidas. Rick e Ilsa são afetados pela guerra e por decisões (ocultas) do passado. Jean-Louis e Anne são afetados pela forma como perderam seus parceiros e os rumos que suas vidas tomaram desde então mas movidos pelo desejo, fulminante, de ficarem juntos. Recomendo a sessão tripla!
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