A culpa é do sistema

A culpa é do sistema

Vivi ou presenciei situações recentemente que me trouxeram a este 171.

Cena 1. Atrasados para um almoço, casal de amigos já sentado no restaurante à nossa espera, quando estamos chegando ao shopping vemos uma fila gigante para entrar no estacionamento, ainda do lado de fora. Achamos estranho e fica ainda pior quando vemos um funcionário do próprio shopping sinalizando para que as pessoas não entrassem, para que seguissem em frente. OK, é o que fazemos. Um pouco mais adiante, vemos nova fila de veículos, também do lado de fora, e paramos ao final dela. Seguem-se alguns minutos de total imobilidade e fica claro que há algum problema. Notamos então que trata-se das cancelas que não estão funcionando. Saio do carro, vou olhar mais de perto, fotografar. Trocamos mensagens com os amigos, avisando do infortúnio. Por incrível que pareça, nossa amiga diz que com ela já aconteceu o mesmo, no mesmo shopping (o Dom Pedro, em Campinas)… e por incríveis 3 vezes.

Vejam a bizarrice da situação: nós queremos entrar para consumir e estamos impedidos. Percebemos, de fora, que também as cancelas para a saída estavam bloqueadas. As pessoas estavam presas no shopping, se alguém ali tivesse algum compromisso importante, ela simplesmente não conseguiria sair. Mais ainda, as pessoas que estavam no começo da fila, imediatamente antes da cancela, não podiam mais desistir de esperar uma solução. Os funcionários não abriam a cancela, os carros de trás estavam colados nele e não havia espaço para manobra… estavam também presos e indefesos. Vimos aos menos três carros, na fila, de onde começaram a sair fumaça, devido ao superaquecimento por ficarem parados por um longo período. O inferno. Não fosse o compromisso e o fato de nossos amigos já estarem sentados, teríamos obviamente desistido de aguardar. Vários outros veículos desistiram. Imaginem a situação dos lojistas desse shopping que obviamente dependem de pessoas circulando para que haja consumo. Será que, para eles, o prejuízo de deixar de cobrar o estacionamento, abrindo as cancelas durante a pane, se justifica? Se já se trata de um problema comum, os funcionários já deviam estar treinados para agir rapidamente, seja distribuindo controles em papel, seja abrindo mão em da cobrança. O que não faz sentido é simplesmente ficarem parados, inertes, sem nenhuma solução, informação ou direcionamento, dizendo “a culpa é do sistema, está fora do ar”. Sei que não é culpa deles, mas é incrível como a muleta dos sistemas tira a autonomia das pessoas e, na ausência deles, ninguém sabe mais o que fazer. E se os funcionários daquele escalão não sabiam, não havia ali, em um sábado à tarde (pico!), ninguém para tomar uma decisão rápida, normalizar o fluxo de clientes no shopping e amenizar o sofrimento de quem queria simplesmente entrar?

Cena 2. Estou na fila da rodoviária, para comprar uma passagem. Ouço o diálogo do cliente à minha frente com a atendente. Ele diz que quer antecipar a compra da volta, para ele e para seu filho, que não estava ali. Percebo o sotaque engraçado, mas ainda assim consigo entender tudo que é dito. A moça explica que não há problema algum, mas que quando ocorre a compra antecipada deve-se informar o CPF dos passageiros, para se fazer a reserva. O homem, então, diz: “CPF, o que é isso?”. Ao que a mulher responde: “É um documento de identidade”, para daí ouvir “Mas eu sou mexicano. Nós não temos CPF”. E segue-se o clássico diálogo da culpa é do sistema, de que ela não pode fazer nada, de que o sistema não deixa emitir sem CPF e blá-blá. E ele não conseguiu comprar.

Eu sou profissional da área de software e sei o quanto sistemas são importantes. E eles devem, sempre, cobrir as regras dos negócios, evitando erros e fraudes. Mas fornecedores de software ou seus clientes, depende de quem define certas regras como essa do CPF que impossibilita que estrangeiros comprem passagens, que simplificam demais a realidade e, depois, não treinam e nem dão autonomia a seus funcionários, criam mais problemas do que soluções.

Cena 3. Queria me cadastrar no cartório eleitoral para votação em trânsito. Encontro um espaço na agência, no último dia para fazer o cadastramento, para ir até lá e quando chego, vejo que tem um monte de gente sentado, aguardando, e ninguém sendo atendido. Vou me informar e descubro que “caiu o sistema”. Era último dia, excesso de acessos, tudo fora do ar. Mas eu podia aguardar, quem sabe normalizaria… e se não normalizasse iam pegar o nome das pessoas que aguardaram, dar um número de controle para sermos atendidos no outro dia. Sem sistema, não há mais solução, a não ser mandar esperar pela volta do sistema.

Talvez a gente precise de um novo bug do ano 2000, um novo medo generalizado e um novo olhar desconfiado para que as pessoas lembrem-se que são elas o fator decisivo, que sistemas ficam foram do ar, dão pau, não funcionam, nos deixam na mão. E precisamos, ainda assim, saber viver.

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