Fazer o que queremos fazer
A maior parte do tempo eu não penso sobre o que eu faço. O mundo já é tão organizado que parece já ter tudo pensado por mim. Eu apenas cumpro o meu papel. Sou capaz de trabalhar semanas seguidas, jantar fora ou em casa, assistir o futebol no domingo à tarde e não saber diferenciar uma semana da outra, não conseguir puxar da memória se aquela conversa que tivemos foi ontem ou no mês passado. Tudo se mistura nesta vida que se sucede sem que a gente precise fazer muito esforço.
É por essas e outras que sempre me surpreendo quando no meio dessa vida que parece ser vivida na terceira pessoa, por “ele” e não por mim, eu me vejo percebendo essa verdade, que essa vida cuja forma de ser vivida parece óbvia, inevitável e delimitada não é nada disso, é só continuísmo e conformismo. Da última vez que isso aconteceu, esse lampejo de lucidez me fez refletir sobre o fato de que somos todos animais. Sim, eu sou tão animal quanto é o gato que mora no mesmo apartamento que eu. Uma diferença importante é que nossos instintos são menos ouvidos do que os dos outros animais – a gente conta com a razão, o aprendizado, os planos a serem realizados, as aspirações sociais e financeiras. Outra diferença é o quanto nós valorizamos as nossas emoções, são raras as decisões que tomamos que não são motivadas por orgulho, vaidade, amor, ódio, inveja e outras tantas.
Nessas horas não é difícil pensar que tudo isso poderia ser diferente. Poderia ser diferente para mim, poderia para ser diferente para você. Mas dá trabalho ser diferente. Uma forma de ser diferente é realmente abandonar convenções, morar na rua, ignorar o capital, o social e suas regras e viver à margem de tudo isso, apenas com o básico, com o mínimo, podendo então dedicar todo o seu tempo a reflexões, à luta básica pela sobrevivência, para poder comer sem ter de onde tirar – e acabando por ter que pedir, implorar. Não, esse caminho precisa de um bom plano para dar certo, me parece que ele não pode ser executado em uma selva de pedra, precisa do campo, da natureza, de outras condições. Uma outra vertente, esta eu aprecio mais, é conviver com o que não queremos para potencializar o que queremos. No meu caso, por exemplo, trocar coisas por experiências, meses sem gosto por dias esplendorosos, não parece ser o melhor negócio, mas também não é o pior. O pior é nunca se fazer o que quer.
Eu estava em um carro, voltando para casa, vendo prédios gigantes por todos os lados, cheirando o ar fétido causado por um rio podre. Eu pensava sobre os vários problemas ocorridos recentemente no trabalho, os desgastes, o acúmulo de insatisfação. Ouvia da minha esposa, que era meu oásis no deserto daquele dia, também queixas similares. Mas nós não éramos infelizes, pelo contrário. As coisas que nós não queremos fazer são apenas uma parte de nós que nos sentimos obrigados a continuar fazendo para podermos continuar fazendo as coisas que queremos fazer. Tendo forças para seguir, alguém para compartilhar tanto do fardo quanto dos prazeres, esse caminho também é bom. Somos animais que vão além do instinto, fazemos escolhas que parecem estranhas. Vamos consumir nossa energia até que a vida se expire. Como animais, teremos nascido, crescido, experimentado uma vida e um dia deixaremos de estar, deixando saudades naqueles que restaram e se importavam conosco. Temos que pensar a respeito de como, onde e porque vamos fazer as coisas que fazemos, para que a nossa vivida seja sempre vivida em primeira pessoa. Muito prazer, vida e seus desafios, vida e suas escolhas.
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