Comprei um relógio e fui ouvir Asaf cantar…

Sábado, 06 de abril de 2013. 23 horas e 38 minutos. Já é quase domingo. Acabo de voltar de uma grande experiência que fecha com chave de ouro uma semana estupenda. E este texto, que escrevo agora para publicar no futuro, será sobre tempo, música e sentimentos.

Hoje eu comprei um relógio, como indica o título deste farelo. Não me lembro de ter usado relógio em minha vida. Lembro de já ter tido outros relógios mas nunca duraram. O tempo nunca foi muito amigo deles. Espero que este que comprei hoje tenha vida mais longa. A verdade é que o comprei por dois motivos. O primeiro é que depois de ter comprado a pulseira celta que adorna meu pulso esquerdo, já há mais de um mês, eu comecei a achar que faltava algo para o direito. O segundo é que decidi acompanhar o tempo passar mais de perto, com mais intimidade e atenção.

O gozado é que eu olho para o relógio e não consigo dizer as horas de imediato. Não estou habituado a acompanhar o tempo passar. Vivi e cheguei até aqui, não sei muito como e nem porque. Mas quero que seja diferente. O tempo passa, nos modifica e quero estar mais ciente enquanto vivo esse processo.

Hoje é sábado, amanhã é domingo. E já no próximo domingo deixarei a minha querida Lyon, que tão bem me acolheu. Não são poucas as pessoas e coisas de que sentirei falta. Essa semana parece que propositadamente quis me mostrar quantas coisas incríveis e memoráveis posso viver por aqui, para que eu saiba, dolorosamente, tudo que estou deixando para trás. Por outro lado, viver é exatamente isso. Estar aberto para novos desafios, para decidir seus rumos, para encarar seu destino. Seja aqui ou seja lá, serei eu.

Acabo de voltar de um concerto. Mais um concerto. Nesta semana fui a três. Eclético, assisti ao vivo apresentações que passaram por metal, hard-rock, world music, jazz, pop-rock, blues. Presenciei músicos americanos, albaneses, espanhóis, franceses, finlandeses e israelenses. Música é mais que música quando ouvida ao vivo. Concertos são momentos que me mostram claramente a dor do tempo que passa. São momentos que morrem rápido, que ficam na memória. Vidas curtas, efêmeras. Mas que podem ser repetidas, mas nunca são iguais. Podem ser melhores ou piores, sempre diferentes e é isso que as torna experiências de vida. Uma repetição nova.

Hoje eu vi, ouvi e conversei com Joe Bel, a cantora de Lyon que faz uma mistura de jazz com pop, tem ótima voz. Ela começou a sua carreira profissional há menos de um ano e agora está fazendo a turnê europeia de Asaf Avidan, abrindo para o cantor-estrela israelense. O concerto de Bel foi curto, porém intenso. Foram pouco mais de cinco músicas sendo que Before é linda e In The City é um exagero lírico. Não há sol nesta cidade quando você está. Guardarei meu CD autografado com muito carinho.

Mas quero mesmo falar sobre Asaf! O que foi aquilo? Confesso que fui ao concerto mais por Bel do que por Asaf, a atração principal. Mas qual foi minha surpresa ao assistir um concerto, como dizer?, singular! Trata-se de um entertainer. Canta com uma voz um tanto afeminada e faz brincadeiras sobre isso. Conta histórias divertídissimas, interage tanto com o público quanto com sua ótima banda e conta com composições inspiradíssimas, uma “canja” de primeira, tudo encaixado perfeitamente. Brinca com o blues fazendo seu pop-rock crescer. A banda usa os mais diversos instrumentos, alguns deles absolutamente inusitados, como um pequeno badulaque que segundo ele vem da Índia, brinquedos de criança, gaitas e gaitas de fole, pandeiro, sintetizadores, teclados… além dos clássicos bateria-guitarra-baixo. O quinteto é um show a parte. Mas, apesar da música ter sido marcante, são duas histórias que ele narrou durante sua apresentação que me chamaram ainda mais a atenção.

A primeira delas por um motivo pessoal. Em um determinado momento do concerto, ele observa um fã mostrando uma bandeira de Barcelona e indica: “Ei, eu reconheço essa bandeira… Barcelona, você esteve ontem em Toulouse, certo?”. O fã indica que sim e ainda responde: “E vou estar amanhã em Lille”. Lembrei de mim mesmo perseguindo os concertos da Camille pela França. Asaf diz: “Talvez seja mais fácil você simplesmente vir com a gente na van…” e emenda “… talvez vocês não me conheçam tão bem quanto o rapaz de Barcelona. Vou contar um pouco sobre mim. Eu tenho 33 anos, já estou um pouco velho, vocês sabem. E faz apenas algumas semanas que eu tenho 33 e eu comecei a pensar no porquê eu virei músico. Eu virei músico também um tanto velho, aos 26 anos. E o motivo foi por causa de uma garota. Eu conheci uma garota quando eu tinha 19 anos e posso dizer, não era só amor. Não era só amor, o amor humano normal ou a luxúria, era como o amor das forças da natureza. Era geológico, era vulcânico. Eram as próprias forças da natureza que nos colocaram juntos de forma que viramos uma única massa, um continente. E era o que precisávamos, tínhamos um ao outro. Um continente vagando pelo mar e com a força imortal do tempo nós começamos a juntos nos modificar em uma relação simbiótica. Passamos a ter vales, montanhas, picos, neve, rios e até tubarões, era inacreditável. Bem, de qualquer forma, a vida era esse continente juntos. Um dia eu notei que as mesmas forças que um dia nos aproximaram começaram, devagarinho, a nos afastar. Começamos a deixar de ser um continente, as placas tectônicas que nos juntaram se deslocaram e nos colocaram cada vez mais distantes. Parecia haver um oceano entre nós. Eu costumava ser um ilustrador, mas eu já tinha um violão. E, por algum motivo, eu tentei construir uma ponte para atravessar aquele oceano usando o violão ao invés dos pincéis. Estávamos em casa, ela estava assistindo TV, era a primeira temporada de Lost!, então eu estava perdido. Eu acho que era mais importante do que o que eu estava tentando dizer pois ela me pedia para me calar, fechar a porta. E eu estava cantando, era a essência do blues, eu cantava “Dói!” para que ela – e eu mesmo – entendessemos aquela dor. Eu cantei mas não foi o suficiente, pois havia um muro entre nós. Então eu comecei a gritar “Dóóóói!”. E ela não se importava, não queria saber, via TV. Bom, não importa. Eu já não a vejo há anos. Mas o importante é que foi por isso que eu virei músico e continua sendo. Há muros em mim que eu continuo tentando transpor com minha música”. Sinceramente, foi um dos mais interessantes comentários de um músico que já ouvi durante um concerto. Fascinante e cheio de nuances, além do bom humor. Muros.

Por falar em bom humor, Asaf é divertidíssimo. Por exemplo, teve outro momento em que ele resolveu contar um pouco de histórias. Ao final da história ele começa a afinar a sua guitarra e diz: “É, eu sei, eu deveria ter afinado a guitarra enquanto eu falava com vocês… mas eu não sou tão profissional. Mas, ao menos, agora vocês podem aproveitar para conversar um pouco entre si. Fazer aqueles comentários que estão guardando para o final do concerto, como “Ei, você viu, ele canta como uma menina!” e a resposta “Pois é, mas por que é que ele ainda tem que gritar, né?”. Auto-crítica, bom-humor, um artista pronto para se expor e tranquilo quanto a sua esquisitice. E não é assim que tem que ser?

A segunda história memorável narrada por Asaf lembrou-me, demais, meus farelos sobre árvores, mostrando que essas ideias não são nada originais, ainda que todo balão que seja esvaziado e preenchido novamente com ar, o será por pulmões diferentes. Pois bem, Asaf disse: “Vocês sabiam que o organismo mais velho que habita a Terra é uma árvore, chamada Methuselah (Matusalém)? Pois é, é verdade, ela tem mais ou menos 3 mil anos e fica em um parque na Califórnia. Batizaram-na assim devido a um personagem bíblico chamado Methuselah, que era o homem mais velho da Terra. E vejam que essa árvore já estava lá muito antes de Cristo ter passado por aqui, talvez antes mesmo da própria Bíblia. Imaginem quanta coisa essa árvore viveu, quanta coisa ela viu? Mas o mais interessante é que não há qualquer indicação, no parque onde ela habita, de quem ela seja. Há várias árvores lá mas você não tem como saber qual delas é Methuselah. A justificativa é que há medo de que ela seja vandalizada caso seja identificada. E isso diz muito sobre nós, os humanos. Assim como também diz muito sobre as árvores, imóveis em seus lugares de nascimento. Mas essa história me fez pensar sobre raízes e galhos. Os galhos que podem se estender e querer abraçar outros destinos. E minha próxima música será sobre isso, sobre árvores, raízes e galhos. Só para concluir essa história, alguns suecos começaram a divulgar que são eles que tem a árvore mais velha do planeta, com um pouco mais de 9 mil anos. Mas eu verifiquei pessoalmente, sou muito interessado em botânica… e não é verdade, podem ficar tranquilos. Vamos à música…”.

Meu relógio mal notou o tempo passar durante as quase duas horas em que Asaf Avidan e seu grupo de quatro músicos iluminaram o palco do Transbordeur com suas histórias e sua música admirável. Concertos musicais são momentos únicos e vivê-los me faz me sentir vivo. Não estou ali para sobreviver nem para procriar, que seriam as motivações instintivas básicas de qualquer espécie viva, mas para viver, sentir, imaginar, apreciar, trocar experiências, aprender, estimular-me. O que faz humanos serem diferentes, afinal?

Minha experiência em Lyon foi rica e o tempo que passei por aqui foi transformador. Obrigado pelo carinho, pelo acolhimento. A última semana antes do meu retorno ao meu Brasil começou hoje. Comprei um relógio e agora posso acompanhar cada minuto. Será vivido com amor, paciência e gratidão e sem nenhum pesar. O tempo afasta ao mesmo tempo que aproxima

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