Descoberta Musical: Chá Noise

Não é de hoje que a cena musical autoral em Campo Grande têm se mostrado virtuosa. Nos últimos 3 meses tenho ouvido com frequencia as cinco músicas do Chá Noise, banda campograndense, contidas em seu documentário+videoclipes, intitulado sugestivamente de Aglomerado de Ervas (inclui o link para o video no fim desse post).Adrian, Anédio, Gleyton, Jungle e Xaras fazem um dub-reggae cheio de misturas e influências, com muito swing e energia. A compilação das 5 músicas entremeadas por depoimentos dos membros da banda é rica e ajuda a contextualizar pequenos elementos do próprio som ou das letras.

Se Liga Nesse Balanço, O Flow do Gurizinho, Deixa Fluir, O Jogo vai Virar e o Swing Boom Boom da Morena são as 5 músicas do grupo que podem ser ouvidas no mini-documentário. Talvez o maior elogio que eu possa fazer ao Aglomerado de Ervas é que cada uma das 5 canções já ocupou o espaço de minha favorita. Atualmente, estou entre Se Liga Nesse Balanço e O Jogo Vai Virar, que acho as mais completas. Mas o trabalho é tão coeso, rítmico e multi-facetado que essa preferência pode voltar a mudar. E essa característica é comum apenas em bons artistas, que fazem música com identidade.

“Não vá pensar que eu sou um anjo… só por fazer você voar”, canta Xaras na primeira das cinco. E quando ele diz “vem cá se liga nesse balanço, é só rodar e deixar levar” é um convite para que possamos acompanhar a beleza, harmonia e ginga das composições do CháNoise, o que posiciona muito bem Se Liga Nesse Balanço como a canção inaugural do vídeo. E se há alguma dúvida de que uma banda de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, pode fazer um som original e de muita qualidade a resposta é dada na própria música… “o que acontece é que moleque dá conta, o que acontece é que ele sabe sambar. Segura a bronca e ainda tira uma onda, mostra pro mundo que ele sabe sambar.”

Uma vez apresentado o cartão de visitas, a banda segue para O Flow do Gurizinho, faixa que batiza o que virá a ser o primeiro álbum do CháNoise. Antes da música, novos depoimentos e dentre eles ouvimos Adrian Okumoto, baixista, parafrasear Lavoisier indicando que “tudo se cria e nada se compara”. Oportunamente dito justamente antes da música em que a base de piano vem de MC’s Act like they don’t know, de KRS-One. Mas ainda que se queira copiar, não vai ser igual, como diz ele. E, mais ainda: “quem não deve, não treme… só segue em frente.” A música está lá e, curiosamente, a letra tem também uma levada rap em certos trechos, remetendo ainda mais à fonte… mas há personalidade e originalidade suficientes para confirmar que nada se compara.

Em um dos depoimentos que antecedem essa segunda canção, Gleyton comenta que uma das coisas mais interessantes deste trabalho é as possibilidades trazidas pela MPC, como a de poder tocar saxofone! E é muito interessante notar como a edição do video (dirigido pelo Adrian!) cria essa fluidez pois podemos conferir até mesmo um solo de saxofone (sintetizado) em um determinado momento de O Flow do Gurizinho! (por volta do minuto 10 do vídeo).Então quando ouvimos Jorge Jungle dizer que não há como deixar de incluir as influências pessoais no som da banda e que, querendo ou não, referências dessa natureza vão aparecer e, em seguida, somos apresentados a Deixa Fluir, é difícil não notar as diversas referências espirituais presentes na letra da música. E trazer temas caros aos artistas em suas composições é o que se espera de artistas e de sua arte, portanto, nada mais benvindo do que conhecer as pessoas por trás da obra usando-se da própria obra para tanto!

A canção diz: “…e toda estrada que andei, caminhei, calejei, calejou, tá calejado“, o que me faz pensar na fluidez da vida, do início em direção ao fim. O que foi vivido, foi vivido, não há volta. A estrada que andei deixou marcas, mas calejou, tá calejado. Mas a letra segue dizendo: “…e toda vida que passei, representei, carimbei, se carimbou, tá carimbado“. Basicamente a mesma estrutura dos versos anteriores, mas agora trocando a estrada que andei pela vida que vivi e aqui temos a primeira constatação de que estamos falando de algo além, transcendental. Cada vida tem sim sua história, seu carimbo. E ao vivê-la, carimbei aquela vida com seus padrões, suas formas. Mas e se a vida se repetir indefinidamente? E se houverem mais vidas? “Ninguém mandou ter asas, agora voa“, continua pregando, e segue com “e mais um dia de demanda faz pensar, em quantas vezes eu voltei e vou voltar? E qual caminho certo eu devo trilhar? Para evoluir nego, tu tem é que trampar” e a espiritualidade – eu diria até, o espiritismo – fica ainda mais evidente. Se temos asas (uma vida a ser vivida), então que voemos (vivamos!). Não há como saber quantas vezes já estivemos aqui ou quantas vezes ainda retornaremos, mas o que é certo é que se quisermos evoluir é necessário trabalharmos (nós mesmos!). É bom ver esse zelo também pelas letras! Deixa fluir com amor!

E a mesma pegada exibida em Deixa Fluir segue em uma das minhas favoritas atuais, O Jogo vai Virar. Xaras divaga sobre a essência do bem, entre ser bom ou ser justo e, em seguida, declama: “para aqueles que não derem oportunidade, como é que esse jogo vai virar?“, que é uma provocação muito justa para aqueles que querem algo mas não se movem para alcançar! Mas ele segue dizendo algo que vai além de objetivos pessoais e toca a humanidade em geral: “com ódio, preconceito e falta de coragem, as coisas por aqui não vão mudar“, levando a um crescendo musical que culmina apoteoticamente no refrão: “adultos, jovens, velhos e crianças, a hora da verdade irá chegar, juntos pelo amor, vamos para a luta, que a hora do combate começou, encontraremos pedras em nossos caminhos, flores com espinhos, mas nada pode nos parar… tu tá caido, nego, acorda, roda, bota prá quebrar… a vida é louca e as ruas tortas ninguém sabe onde vai dar“. Música engajada, motivante e, ainda mais importante, empolgante para ser cantada a plenos pulmões. Vamos, sim, acordar e botar para quebrar!

Para finalizar o video, depoimentos geográficos! Campo Grande está no meio, entre o asfalto e o mato, com um estúdio rodeado por lagos, árvores – o lado orgânico do som da banda. A cidade morena – assim conhecida devido à cor avermelhada de sua terra – é homenageada em mais uma música que pega emprestada a base de Wilmot’s Last Skank, do Sabres of Paradise, para cantar sobre as delícias da capital do MS! Dois trechos da música são especialmente claros quanto às referências a Campo Grande: “segunda-feira, ladeira, poeira vermelha no ar” e “no vai e vem na fronteira que a fonte não pode secar“, o que reforçam também a identidade CháNoise da banda. E que venham logo o primeiro álbum com mais músicas e os concertos, que o show não pode parar…

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