Janelas
Acordou com sono. Esticou a mão para o criado mudo e alcançou seu celular. Ainda era cedo. Leu seus e-mails com os olhos ainda enrugados de sono. A única luz no quarto era emitida pelo aparelho. Quando terminou a leitura e apagou os spams que insiste em receber diariamente, a escuridão retomou o seu domínio.
Continuou deitado. Desperto porém inerte. À medida que o tempo passava seus pensamentos vadiavam entre imaginar a rotina do dia que se apressava em chamá-lo ou em imaginar se o celular apitaria indicando que ele tinha mais algum trabalho de limpeza a fazer. Os minutos se acumulavam sem que nem uma e nem outra de suas pobres aspirações viessem resgatá-lo para sua zona de interesse. Sua vida desinteressante tinha, afinal, que começar.
Já de pé e na cozinha, a água esquentava preparando-se para atravessar o coador de papel, mesclar-se ao pó de café e produzir o gosto amargo necessário para que ele iniciasse as atividades do dia. Beber, comer, banhar-se. Rotina. Tudo igual. Fazia questão de deixar o celular no quarto enquanto preparava e depois tomava seu desjejum. A intenção era a de maximizar as chances de ter uma surpresa positiva quando voltasse a tê-lo em sua mão. Miseravelmente, dia após dia, restava apenas desilusão.
O dia prosseguia com ele já limpo ou qualquer coisa próxima disso. O corpo, ao menos, não exalava o cheiro do seu fétido vazio interno. O seu trabalho era bastante peculiar. Dirigia-se a um grande paredão adornado por inúmeras janelas. Sua ocupação era abrir algumas dessas janelas, escolhidas arbitrariamente. Depois disso, ele tinha total liberdade para fechá-las novamente ou, então, para deixá-las abertas. Ele podia até dispender boa parte de seu tempo observando o outro lado de uma ou outra janela, vendo tudo aquilo que estava além do paredão. Apesar de não haver muitas regras e de as janelas se estenderem quase que infinitamente, ele parecia apetecer-se com a rotina. Abria sempre as mesmas. Às vezes, apercebendo-se de sua previsibilidade irritante até mesmo para si, fechava rápido todas as janelas de seu dia-a-dia, as “suas” janelas, e prometia que iria mantê-las fechadas, ao menos por algumas horas. Que iria explorar um pouco todas as outras possibilidades que ali se estendiam, todos os outros mundos e paisagens que poderia vislumbrar. Ali, a seu lado, sem cadeados ou mecanismos complicados, ao alcance de sua mão. Toda essa euforia de pensamentos, via de regra, terminava ao notar seu vicio em ação e as mesmas janelas de sempre novamente abertas e seus olhos, em lágrimas, observando a mesma paisagem cansada de todos os dias.
De vez em quando, um ou outro colega de trabalho, nas raras reuniões de socialização que frequentava, comentava sobre as janelas de sua preferência. Era incrível como as tais infinitas possibilidades eram reduzidas pela mediocridade. Ao mesmo tempo todos se sentiam bem pois havia um sentimento de inclusão. Olhamos para mundos conhecidos. Vez ou outra alguém descrevia uma janela legal, com uma vista estupenda e todos os outros, no dia seguinte, corriam para conferir a novidade. Porém, hábitos são difíceis de mudar e era raro que essas novidades tivessem força para passar a pertencer àquele pequeno grupo das janelas de todo-dia.
Fecha! Fecha! Por favor, fecha! Uma voz passou a ser ouvida cada vez com mais força em sua cabeça. Ele trabalhava só e sabia que a voz só podia vir de si mesmo. Não era uma voz nova, essa vontade de manter todas as janelas fechadas se manifestava vez por outra. Mas seu trabalho era o de, alternadamente, abrir janelas e olhar por elas, não mantê-las fechadas. Para mantê-las fechadas ele não era necessário. As janelas não precisavam dele para isso. Mas, então, decidiu ele que era ele quem não precisava delas.
Então, em uma manhã até ali tal qual todas as outras, ficou, o dia todo, olhando para o imenso muro em que todas as janelas permaneceram fechadas. Teve que conter, dentro de si, a vontade de repetir hábitos mecânicos, que faziam dele mais um robô dentre tantos. Não, naquele dia conteve-se. E ao contrário de todos os robôs, depois de alguns minutos, chorou. Uma alegria incontida por sentir-se livre. Uma alegria que durou todo o dia. Ao fechar todas as janelas abriu a única janela que de fato interessava, a janela para sua própria paz.
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