O Homem e o Rio

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Acordou como acordava em qualquer outro dia. E já foram tantos. Alguns mais felizes, outros mais tristes, mas sempre com um sentimento que o acompanhava desde que podia se lembrar, uma sensação de que algo o guiava pela vida, algo maior do que a própria vida de cada um de nós. E isso o consolava nos dias tristes. E isso o fazia sentir-se grato nos dias felizes.

Sua rotina matinal não se alterava já havia muito. Independente do dia da semana, levantava-se e imediatamente aquecia água para seu café. Enquanto aguardava a ebulição da água, lavava o rosto rapidamente e já há alguns anos não se incomodava com o cabelo nem com os dentes. Passava o café. Tomava a bebida ainda muito quente e em um gole. Comia uma fatia de bolo de laranja ou limão, em geral seco por ser o mesmo bolo consumido durante vários dias. Apreciava uma segunda xícara de café, dessa vez em dois goles. Desjejum tomado, fechava a casa e colocava a chave em seu bolso esquerdo, o mesmo lado onde ficava seu canivete. E seguia para o rio, de onde via o sol vir e ir-se.

Nos últimos tempos, porém, cada vez trabalhava menos e admirava mais. O rio não parecia mais o mesmo, havia ganhado uma aura sagrada. Talvez por ter sido quem o alimentou por toda uma vida, como uma mãe mais eterna do que aquela, a sua, que se foi quando ainda era moço. Talvez por perceber que já não mais tão abundante e, assim, temeroso e inseguro por continuar abusando de sua generosidade. Talvez, simplesmente, pois o passar do tempo foi tornando-o mais reflexivo, mais pensativo, como preferia ele.

Ainda com o gosto amargo do café em sua boca, armava seu equipamento arcaico, artesanal. O que praticava não era esporte e tampouco via como uma atividade comercial. Era uma arte aliada a uma forma de sobreviver. Foi assim que passou sua vida e era assim que aguardava pelo fim dela.

Naquele dia, porém, a vara estendida e submersa deixou de fazer sentido. A pequena rede armada na correnteza tampouco parecia lógica. Puxou-a rapidamente, ainda vazia, e rasgou-a enfurecido, atirando para o lado os destroços. Sacou o anzol do fundo do rio, retirou a isca viva e atirou-a para a morte seca. Desfez-se da vara e sentou-se.

Som de água correndo. Correnteza, água em movimento. Atira uma pedra e observa como a perturbação artificial, provocada, é efêmera. A água deforma-se momentaneamente, absorve o impacto, assimila-o e volta a seguir seu fluxo, indiferente. Som de água correndo. Correnteza. Barulho de água acalmando os pensamentos, levando-os consigo em seu movimento. Outra pedra, outra perfuração na pele de água. Mas nada altera seus caminhos, nada muda seu propósito de seguir sempre adiante.

O homem, após arremessar algumas pedras e a contemplar o rio durante horas tem um palpite de que o rio é muito mais vivo do que parece e de que, como todos nós, não fica realmente indiferente ao que ocorre consigo. Ele ainda guarda, em seu leito, as pedras arremessadas. Ele ainda chora os peixes arrancados sem permissão, mas não aqueles doados com gratidão. O rio também tem seus dias de cheia e seus dias de baixa. O rio também trabalha o dia todo para ter o prazer de, a noite, cear com a lua.

Foi nesse instante de iluminação que o rio, pela primeira vez, falou com o seu velho companheiro. E disse o rio: “Amigo, velho amigo. Você que me visita já por quase toda uma vida. Saiba que chegou a hora de me deixar seguir e seguirei. Já você, não venhas mais, já é tarde.” O Homem chorava ao ouvir tal lamento e suas lágrimas chocavam-se contra a água fria e doce do rio. E, dessa vez, esse foi um elemento que não foi assimilado facilmente. O rio, desconsolado, abraçou o velho homem e, neste abraço, fez com que suas lágrimas secassem embaixo d’água.

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