Te vejo lá fora

Acordou cedo, como sempre. Respirou leve e ritmado, esperando o sono ir embora de vez. Mais uma vez, como em tantos outros dias, reparou atentamente se o seu companheiro já estava acordado ou não. Era difícil ter certeza, o seu sono era pesado porém silencioso. E no silêncio pesado dos dois companheiros, que juntos já cumpriam 10 anos, os pensamentos de um se entrecruzaram com os sonhos do outro.

Saber ou não se o outro ainda dormia era um dos poucos interesses que ainda nutria. Um jogo de adivinhação para o qual apenas o refinamento da convivência forçada é capaz de preparar. Talvez esse fosse um jogo ainda mais interessante do que o seu complemento, o de adivinhar, à noite, se já havia adormecido. O jogo noturno era diferente, normalmente iniciado quando, após ou durante um agradável bate-papo, um dos dois silenciava. Por vezes, ainda tentativas tímidas de diálogos, com breves “Você ainda está acordado?” ou “Já dormiu?” antecediam o início oficial do jogo. Pois, é certo, muitas vezes não respondiam e simulavam sono, enquanto na verdade buscavam apenas o silêncio e a reclusão que a companhia do outro nunca permitia que fossem completos.

É interessante notar que estivessem juntos já há tanto tempo. Os dois foram acabar juntos da maneira mais improvável. O primeiro, assalto a mão armada seguido de homicídio duplo. O segundo, acusado de desvio de dinheiro e diversos outros golpes contabilísticos, além de homicídio indireto, ao incitar o suicídio da esposa. E juntos ainda deveriam ficar por mais alguns anos. O primeiro, de ótimo comportamento, espera sair dentro de mais quatro. O segundo, não menos do que o dobro disso. Originalmente, sua pena era até menor, mas uma vez encarcerado, conseguiu estendê-la. Sim, ele era desses.

Enfim, ainda que após 10 longos anos, nunca foi fácil para o primeiro adivinhar se o segundo já tinha acordado. E, na verdade, apenas ele se importava com isso, uma vez que sempre que o segundo acordava, a presença maciça do outro a escovar os dentes ou a fazer a barba não deixava espaços para a dúvida. Hoje, por exemplo, ele estava seguro, em seu silêncio, de que o outro já estava acordado. Achava isso devido à imobilidade excessiva, ao silêncio sepulcral que emanava da cama de seu companheiro. Não podia ser natural, ele tinha que estar acordado para que seu sono fosse tão perfeito. Mas nós, no fundo, sabemos que não. Dormira profundamente e até sonhara. E em seus sonhos sequer havia um companheiro de cela, visto que não havia sequer uma cela. Em seus sonhos era livre, era bom. Nessa sua outra vida, ele tinha um nome, ele era alguém. Era muito mais do que um ensaio de vida, cheio de morte ao seu redor. Em seus sonhos tudo tinha valido a pena e era lá que ele gostava de passar seu tempo. E por isso dormia. E por isso recusava-se a acordar. E por isso pouco se importava se sempre era ele que se levantava depois, se nunca era dele o privilégio de saber as primeiras notícias do dia. Não gostava da realidade, preferia o seu mundo imaginário, lá onde apenas ele é deus de seu destino, lá onde ele era um ser cheio de luz, alegria e júbilo.

O outro não fazia ideia de nada disso. Nunca ouvia as descrições deste mundo mágico no qual o segundo passava boa parte de seu tempo. Seu companheiro nunca ousava descrever esse seu mundo perfeito e imaginado, no qual embebia-se de prazer e de plenitude. Não queria ser visto como sonhador embora essa talvez fosse a palavra que melhor o descrevesse. O fato, imutável e para o qual não há negação, é que ambos dividiam uma cela suja, apertada, fria. E não queria colocar seus sonhos a habitar esse mesmo espaço. E por isso calava-se. E por isso, à noite, silenciava-se em busca de ir novamente ao encontro deste outro mundo.

Na ignorância de tudo isso e buscando consolo para suas pobres aspirações, lança depois de alguns minutos de observação: “Pode falar, eu sei que cê tá acordado”. E o segundo, imóvel e em silêncio, na verdade, nunca mais abriu os olhos e nem tirou o sorriso de seu próprio rosto.

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