A Balada de um Homem Comum
O novo filme dos Irmãos Coen, Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis, 2013) confirmou-se como uma agradibilíssima e delicada experiência cinematográfica, mais ou menos como eu previra ao assistir o trailer, conforme comentado no Cine 42 Preview a respeito do filme.
Acompanhamos uma semana na vida de Llewyn Davis (Oscar Isaac), um músico folk que tenta firmar-se na disputada cena musical americana do início dos anos 60 após a dura morte de seu parceiro de palco, Mike, ao mesmo tempo em que descobre que Jean (Carey Mulligan), esposa de seu amigo Jim (Justin Timberlake) está grávida, e de que ele pode eventualmente ser o pai da criança. Ainda por cima, Llewyn busca sobreviver dormindo nas casas de conhecidos que oferecem abrigo até que um dia, por descuido, deixa escapar o gato de uma dessas famílias e vê-se obrigado a cuidar dele até ter a oportunidade de devolvê-lo aos donos.
Trata-se de um filme de personagem, isto é, não há uma trama com uma missão a ser cumprida ou a busca por alguma meta. Há apenas uma semana, dia a dia, na vida de um homem ordinário, com seus sonhos, ambições, falhas, atitudes egoístas misturadas com outras de tocante altruísmo, enfim, o tal homem comum do título. Apesar de, portanto, entender o título nacional que evoca bem a alma de um músico aprisionada em alguém que emociona com sua arte porém sem um maior alcance de público, prefiro ainda o título original “Dentro de Llewyn Davis” (em tradução literal), pois é exatamente essa experiência de mergulho na alma e na vida de uma pessoa que a atmosfera, a bela fotografia, a ambientação, as boas interpretações, a trilha, as canções e o roteiro exemplar proporcionam. Filme mais do que recomendado (afinal, dei 5 estrelas), mais um belo exemplar do cinema dos Coen.
O roteiro do filme é circular. Tal qual um vinil tocando, com alguns arranhões e de maneira repetitiva, cíclica. Tal qual a vida do personagem, que dá voltas para sempre retornar ao mesmo ponto. Um registro acidentado, um vinil com arranhões que a vida dá. Um pai adoentado e uma relação familiar complicada. Relacionamentos amorosos também difíceis, marcados por abortos – e o diálogo em que Jean diz a Llewyn como ela encara que ele deveria tratar seus relacionamentos sexuais dali por diante mostra muito bem o desamparo emocional a que o personagem é exposto. O registro de seu trabalho – que poderia ser a meta a ser alcançada – já existe e é plenamente descartável, as vendas não decolam.
Os demais personagens que orbitam a vida de Llewyn não passam de relações rasas, pessoas que podem oferecer um sofá, uma carona, uma opinião, uma oportunidade, um soco. O gato que ele perde e com quem é obrigado a passar o dia oferece talvez um dos momentos de maior felicidade do personagem, quando após perde-lo imagina vê-lo passando novamente, ao acaso, em frente à uma cafeteria. O desfecho do trecho envolvendo a carona com o caladão “poeta” Johnny Five (Garrett Hedlund) e o excêntrico Roland Turner (John Goodman, adoravelmente detestável) até Chicago mostra também a indiferença do personagem – neste caso, até justificada. O conselho final do produtor musical Bud Grossman (F. Murray Abraham) é carregada de um cinismo involuntário que coroa o belo roteiro. E se vale ressaltar que todos os personagens secundários são bem construídos e muito bem interpretados, o mérito do filme cai muito na interpretação sólida de Oscar Isaac, que repassa ao personagem todo o descontentamento ainda recheado com sonhos e com toda a dor da perda do parceiro e da falta de uma conexão real com alguém.
Mas há também envolvimento emocional, mas sempre com muita dificuldade, muita dor e regado a música e desilusão. Sua irmã, seu pai, o jantar na casa dos Gorfein, a sessão musical improvisada com Jim e Al Cody (Adam Driver), a inveja inconformada diante da performance de Troy Nelson, aquele que tem o algo mais que é difícil de enxergar. O filme tem um tom de desolação e pessimismo permeado pelo típico humor dos Coen, encerrando de onde se iniciou mas dando muito mais informações para que a gente entenda a real situação do personagem, os porquês, o óbvio resultado da apreciação dos jornalistas do Times na noite de sua última apresentação, ao notarmos quem “passou o chapéu” junto com Davis na noite de apresentações no boteco de quinta no qual o personagem toca, fechando o ciclo da maneira mais cínica possível.
Publicado originalmente aqui.
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