A Trapaça
O novo filme do diretor David O. Russel, A Trapaça (American Hustle, 2013) tem vários pontos fortes, a começar pelo elenco todo que brilha a ponto de cegar, o roteiro e a edição que jamais se perdem ao simultaneamente narrar a intrincada história e desenvolver as motivações dos personagens de maneira fluída que fazem as mais de duas horas de projeção passarem despercebidas, a trilha sonora, os figurinos e a direção de arte que nos transportam para a Nova York do final dos anos 70 em seu clima de depressão pós-guerra e escândalos políticos, busca pela fama, ganância e competição e uma bela fotografia aproveitando muito bem os diversos cenários e ambientes, alterando entre o luxuoso e o simplório, pelos quais os personagens desfilam. Tudo isso costurado de maneira segura, correta e com lampejos irretocáveis por Russel – como as duas cenas cruzadas em que há uma revelação importante seguida pela reação do outro personagem e que amarra muito bem as viradas em suas motivações. Por conta disso tudo, acho amplamente justificadas as 10 indicações recebidas pelo filme ao Oscar 2014 (é o filme com o maior número de indicações no ano, ao lado de Gravidade).
A trama acompanha os vigaristas Irving (Christian Bale) e sua comparsa e amante Sydney Prosser (Amy Adams) – ou Edith Greensly, seu disfarce – que acabam sendo descobertos pelo intrépido e hiperativo agente fiscal do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), para quem aceitam trabalhar a fim de se verem livres de acusação desde que ajudem DiMaso a alcançar contraventores ainda maiores, como o popular prefeito de Nova Jersey Carmine Polito (Jeremy Renner) ou o homem-forte da máfia de Miami, Victor Tellegio (Robert de Niro). No entanto, um fator que pode complicar a vida de Irving é a sua incontrolável e não muito inteligente mulher, Rosalyn (Jennifer Lawrence), que sabe demais e não está contente com o fato do marido ter outra mulher.
Esse é o pano de fundo no qual a história se desenrola, mas não se enganem, apesar de o roteiro ser bem costurado, contar uma história (levemente) baseada em fatos reais que mostram bastidores da política e do seu jogo de interesses e corrupção, a força do filme está mesmo em seus personagens e suas motivações.
Christian Bale é, sem dúvida, o principal nome do filme e sua atuação é irretocável, construindo um Irving vaidoso – e o detalhe de estar acima do peso e careca ajudam nesta construção – e seguro de si mas, ao mesmo tempo, temeroso pelo complicado jogo que está jogando. Dividido entre seu amor por Sydney e a relação conflituosa e confusa com Rosalyn, mas desempenhando com ternura a figura de pai adotivo do filho desta, o personagem transparece uma carência emocional tocante – e o seu futuro envolvimento com o político Polito vai evidenciar isso.
Jennifer Lawrence convence com uma personagem complicada, antipática, mas a cena de “Live and Let Die” foi feita para chamar a atenção para a atriz e, a meu ver, sobra e destoa do restante da obra. Bradley Cooper parece repetir o mesmo tom da sua atuação em “O Lado Bom da Vida”, também de Russel, mas desta vez focando apenas o lado hiperativo na construção de seu agente do FBI de cabelos minuciosamente encaracolados. A gag em que ele e seu superior, vivido com graça pelo comediante Louis C.K., discutem uma história alegórica a respeito de uma pescaria na neve e ele sempre interrompe a história tentando antecipar seu final – e está sempre errado – são excelentes e casam perfeitamente com o encerramento da narrativa principal. É gozado que o diretor tenha escalado a mesma dupla de seu filme anterior, mas desta vez ambos como coadjuvantes – ainda que Cooper seja, na prática, mais do que isso.
E Amy Adams está linda, interessante e misteriosa, tendo sido para mim a interpretação mais fascinante, pois bem como Irving, a sua própria personagem sabe que precisa atuar e nos diz quais serão suas ferramentas de atuação e, ainda assim, tendemos a ser iludidos por aquilo que queremos ver – outra máxima muito bem aproveitada pelo filme. De Niro aparece pouco e rouba a cena e as ações do político de Jeremy Renner são o laço moral do filme, fazendo o espectador refletir se concorda ou não com aquele estilo de política, a “adequação ao sistema”, já que a paixão e a vontade de fazer mais pela população de Polito parecem, o tempo todo, genuínas.
Portanto, A Trapaça é um filme bem amarrado, bem narrado e bem interpretado, uma excelente pedida para ser visto ainda nos cinemas.
Publicado originalmente aqui.
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