Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância)
Eu tomei contato com o filme Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância) ao ler uma entrevista do seu diretor, o mexicano Alejandro G. Inãrritu, responsável por excelentes filmes como 21 Gramas e Amores Brutos, em que ele falava do filme e dizia que nunca dirigiria um filme de super-heróis. Fiquei confuso pois eu imaginei, a princípio, que Birdman se tratava justamente disso. Não podia estar mais errado e, mesmo sendo fã confesso de quadrinhos e consequentemente de boa parte de suas adaptações cinematográficas, vi com muitos bons olhos o ótimo tapa na cara que Iñarritu dá na indústria hollywoodiana: seu comodismo, o “desrespeito” à arte, a indústria das celebridades, da fama e das vaidades, os egos inflados, tudo isso e muito mais está misturado no enredo desse filme que me lembrou – e muito – o impecável e superior Cisne Negro, obra-prima de Darren Aronosfky. E aqui como lá, a entrega visceral dos atores principais conduz a narrativa e a eleva a algo que beira o sublime. Palmas, de pé, para Natalie Portman (de novo e sempre!) e Michael Keaton.
O astro do cinema Riggan é conhecido pelo papel de Birdman, um super-herói, que marcou sua carreira. Hoje em dia, mais de uma década depois do filme Birdman 3, ele está empenhado em adaptar para os palcos da Broadway um livro que o tocou na infância, ainda que tenha que fiar o projeto com sua credibilidade e as poucas economias que restam. Para atrapalhar ainda mais, Riggan vive em crise com a namorada atriz, tem uma filha (Emma Stone) vinda da reabilitação por uso de drogas como assistente pessoal, um produtor amigo mas ganancioso (Galifianakis) para cuidar do projeto e problemas para escalar o elenco da peça – o que se complica ainda mais com a entrada do ator-estrela-do-teatro-porém-egocêntrico-ao-extremo Mike, vivido brilhantemente por Edward Norton; a atuação de Naomi Watts como a atriz Lesley, especialmente na cena em que ela comovida agradece por realizar seu sonho, é comovente.
Como se a situação acima não bastasse, Riggan é atormentado pela voz de Birdman em sua cabeça, como uma espécie de consciência ou grilo-falante (olha o Cisne Negro e sua esquizofrenia ai, no contexto justamente de buscar alcançar a glória em sua própria arte). Dotado de um cinismo constante e procurando sempre demonstrar sua relevância na vida de Riggan, o Birdman não o deixa em paz, sempre pronto para cutucar a ferida do ostracismo e da insegurança de Riggan. Há várias soluções visuais que complementam muito bem esse enredo. O fato de Riggan achar-se poderoso é ilustrado por sua telecinésia. Os curativos em seu nariz transformam-no, novamente, em um patético Birdman, fazendo as vezes da máscara do herói.
Do ponto de vista narrativo, o filme é impecável. A fotografia é cheia de planos-sequência, quase que um documentário, acompanhando os personagens para lá e para cá nos labirínticos bastidores e camarins do teatro. A música tem muitos elementos de percussão e usa um pulso rápido, que não pode ser perdido. A vida acontece, no palco não há como nada ser refeito, tudo tem que ser vivido de verdade, intensamente, a cada instante. E é essa a sensação que o filme passa, com personagens críveis, com alma de teatro – apesar de não ser confinado ao mesmo espaço e de ter diversos efeitos de pós-produção. E tudo isso só é possível graças ao elenco inspirado, com todos os atores vivendo seus personagens com uma intensidade fabulosas. Mas o destaque é mesmo Keaton, que alterna fragilidade e força, hesitação e confiança, loucura e sanidade, sempre nos mantendo curiosos e ansiosos pelos próximos passos do impulsivo personagem. Chovendo no molhado, é óbvio que sua escolha para o papel não é fortuita, visto que na vida real ele tem paralelos claros com Riggan, por ter sido ele próprio o Batman, no filme homônimo de Tim Burton, em 1989 e depois reprisando o papel em 1992 – e hoje sendo um ator relegado a papéis secundários e de apoio, tendo protagonizado seu último longa antes de Birdman em 2008.
Birdman é um filme sobre arte, sobre cinema, sobre teatro – e também sobre os nossos papéis no mundo. Afinal, qual o sentido da vida? Parece querer, a certo momento, responder o filme. A arte, certamente, tem papel fundamental no que nos faz humanos e é a resposta para muitos. Mas o legado individual tem também relevância? Enfim, sem querer estender essa filosofia de botequim, quero destacar ainda o que é concreto: a ácida crítica ao momento atual, de extrema preguiça, da indústria norte-americana de cinema. O trecho em que Riggan tenta escalar um ator e todos a quem se refere estão já escalados para papéis em filmes de super-heróis é o mais óbvio. E se olharmos para o elenco do filme e notarmos que Norton já foi Hulk, Stone foi Mary Jane, a namorada do Homem-Aranha, e Naomi Watts esteve em King Kong, vemos que é mesmo difícil encontrar atores hoje que não tenham se envolvido com filmes de fantasia e, mais especificamente, com uma das diversas franquias dos heróis da Marvel e da DC, que parecem ser o alvo principal do filme.
Mas não é o único. Sobre para as mídias sociais e sua (ir)relevância, com a filha cuidando de trazer o pai de volta às notícias mas só vendo isso de fato acontecer quando um incidente produz um involuntário (como geralmente são) viral. A indústria de celebridades e a extrema vaidade dos astros também é atacada. Riggan é um pai ausente, um namorado indiferente, um ex-marido ridículo e só consegue se preocupar, para elevar-se, com o seu próximo projeto. Não por amor à arte, mas por amor a si próprio. Mike também tem o ego em alta, acredita ser melhor do que os outros atores, por acreditar que o teatro é mais verdadeiro do que o cinema – ainda que isso possa ter alguma verdade, o esnobismo não tem cabimento. Sua busca pela verdade em cena é, sim, fascinante. A cena da ereção e seu comentário sobre como sentir-se verdadeiramente ameaçado em cena – o que acaba tendo papel fundamental para o desfecho do filme – divertem ao mesmo tempo que nos fazem pensar sobre as diferenças de teatro e cinema.
O confronto com a crítica de teatro disposta a arrasar com a peça sem jamais tê-la visto, apenas para reservar espaço para atores e não celebridades como Riggan e o posterior teatro super-realista, ou a virtude da ignorância, são uma excelente amarração final, seguidas do delírio de Ícaro que a tudo conclui.
Filmaço, em um ano de várias biografias indicadas ao Oscar (A Teoria de Tudo, Foxcatcher, O Jogo da Imitação, etc.) a história fictícia do ator Riggan talvez seja mais realista do que o próprio rei. E ainda faz pensar.
0 Seja o primeiro a curtir esse farelo