Desconhecido

Desconhecido

Tem como se preparar para o desconhecido? Não, por definição, por tratar-se de algo que não conhecemos, não podemos nos antecipar. E isso gera um desconforto. Talvez seja esse um dos principais fatores para o fascínio que a morte exerce sobre nós, o fato de não podermos nos prepararmos para recebe-la, a data em que chega é desconhecida assim como é o que está além de lá.

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Mas, no nosso dia-a-dia, será que estamos mesmo sujeitos a tantas coisas desconhecidos assim? Será que há algo ainda que não conhecemos? Sim, na verdade estamos o tempo todo expostos ao desconhecido, mas o nosso cérebro, talvez como um mecanismo de defesa, não nos permite nos dar conta disso. Para isso criamos hábitos, criamos preconceitos, criamos nossos julgamentos preliminares e até definitivos de situações, coisas, pessoas. Na verdade, estamos criando uma tendência de nos supormos entendidos em quase todos os assuntos e não há coisas que realmente nos surpreendam, não há grandes desconhecidos nesse nosso novo mundo de meu Deus!

Ora vejam, a quantidade de pessoas que se automedicam ou que questionam o que dizem seus médicos só aumenta. Reformas e pequenas obras dispensam arquitetos ou engenheiros. Quando algo dá errado, lá estamos nós para dizer o que deveria ter sido feito para evitar a catástrofe, pois sabíamos – como sabemos – a melhor forma de tudo fazer. Quando acabamos de conhecer alguém, já é claro para nós todos os atos daquela pessoa que o levaram até ali bem como todos os atos futuros que os levarão até onde forem. Clarividência passada e futura. Não há mais mistérios, nem magia, nem grandes feitos que eu também não poderia fazer, com um pouco de foco e dedicação. É a era do faça você mesmo, muito mais do que o punk jamais foi.

É claro que não há profundidade em (quase) nada disso. Há opinião, subjetivismo e nossa visão de mundo nos ajudando a interpretá-lo e a interagir da forma mais agradável – para nós – possível com ele.

Mas vamos então retomar. O amanhã é desconhecido para nós. Assim como é a próxima hora, o próximo minuto, o instante seguinte… Podemos ter planos. E, ao chegar amanhã, podemos nos dar conta de que tudo ocorreu conforme eles. Mas, ainda assim, estávamos sujeitos ao destino, ao acaso, ao desconhecido. O fato de tudo ter saído conforme o plano talvez signifique, apenas, que estamos segurando as rédeas da vida forte demais – e isso cansa e também cansa à nossa montaria, o que só serve para nos levar a caminhos conhecidos, em geral já acinzentados pela poeira e próximos da nossa futura cova. Mas um telefonema que atrasa. A decisão de seguir um conselho de uma amiga. Uma morte. Uma nova vida. Uma palavra. Um gesto. Milhões de coisas que podem, num instante, alterar para sempre nossos rumos, são impossíveis de prever. As coisas e mais ainda suas consequências à medida que o tempo – e outras milhões de coisas – vão ou não acontecendo. E quanto a isso, não há automedicação que dê jeito. É só vivendo.

Mas tem também um outro nível de desconhecido, uma outra classe da falta de conhecimento, que tem menos a ver com o futuro e mais a ver com o passado. Afinal, todos temos um recurso extremamente valioso porém finito a que damos o nome de tempo. Nascemos com uma quantia indeterminada desse recurso e vamos investindo-o, momento após momento, em experiências que nos enriquecem, que nos engrandecem, que nos fazem avançar. E acumulamos, com essas experiências vividas no tempo que investimos, conhecimento. Eu, por exemplo, investi tempo em relacionamentos humanos, em estudos de coisas diversas, em trabalho, em músicas que ouvi e agora tento tocar, em filmes que assisti, em livros que li, em viagens – muitas viagens – que fiz, em papos e reflexões com amigos. E esse tempo investido, de acordo com essas escolhas, é quem me faz ser quem hoje sou. E é assim com cada um de nós.

Portanto, hoje, se olho para uma obra arquitetônica, um parecer jurídico, uma radiografia ou o resultado de algum outro exame mais complexo, ou um painel de um avião, não me sinto à vontade para avaliar se tratam-se de bons trabalhos. Não investi meu tempo nos conhecimentos técnicos necessários para ser arquiteto, advogado, médico ou piloto. Mas é curioso notar como me sinto à vontade – mas cada vez menos, é verdade – para dar minha opinião sobre músicas, filmes, livros. A arte talvez não seja um trabalho, um comércio. E a boa arte certamente não é, mas sim uma forma de expressão da alma humana. E talvez por ter investido meu tempo em relacionamentos humanos – e todos nós o fazemos – eu me permita criticar a obra de outros tantos, porque elas me permitem uma identificação com algo meu. Mas não posso permitir, ao menos não a mim, analisar tecnicamente essas artes para as quais não me dediquei. Quando vejo pessoas dizendo que um crítico de cinema, por exemplo, emite apenas uma opinião e que aquilo é subjetivo, penso que trata-se apenas de outra opinião, em geral sendo usada para justificar o fato de que a pessoa gostou de um filme tecnicamente fraco. Ou então trata-se de um mau crítico, que de fato usou o subjetivismo em sua análise. Não, o papel do crítico pode ser isento, pois deve-se dominar a técnica para criticar. E ao dominar-se a técnica, pode-se apreciar as obras de arte em um outro nível, que vai além do raso. A emoção permanece mas agora ainda mais intensa, enaltecida pela intenção do artista e não apenas pela manipulação provocada.

Sonho que possamos todos investir nosso tempo conscientemente e de forma a sermos a cada dia pessoas melhores, de acordo com nossos interesses. E que possamos deixar todo o resto do mundo – conhecido ou não – em paz.

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