Dois concertos e um festival
Eu quero dividir esse texto em duas partes. A primeira servirá para falar da realização de um sonho pessoal materializado em forma de apresentações musicais: dois concertos da banda Los Hermanos que assisti no espaço de uma semana e ainda um dia no Rock In Rio com direito a System of a Down, duas bandas vivendo seus hiatos ou quase aposentadorias, com último álbum original lançado completando uma década de vida e, portanto, dois shows “raros” e que eu nem sabia se teria ou não possibilidade de ver. A segunda parte do texto servirá para falar sobre o público nessas três datas, em um festival grande como o Rock in Rio, que reúne tribos diversas, ou em shows (mais voltados) para fãs como é o caso das datas reservadas para a banda carioca. Como se comportam essas dezenas de milhares de pessoas que dedicam um dia de suas vidas a testemunhar e compartilhar com outros iguais a si, devotos, um momento tão especial de suas vidas? Porém, antes, um pouco mais sobre os artistas.
System of a Down é uma banda incrível vivendo um período de nove anos sem lançar um novo álbum. O que esperar então de um show deles no Rock in Rio? Sim, os clássicos, já que a apresentação não teria que dividir espaço com as músicas de trabalho de um novo álbum. Mas foi muito mais do que isso. Não foram só os clássicos, foram praticamente todas as músicas dos seus quatro principais álbuns (estou ignorando Steal this Album!). Por mais que no mesmo dia eu tenha visto Johnny Depp tocar guitarra, tenha assistido mais uma performance tecnicamente impecável, mas sem alma, do Queens of the Stone Age e tenha visto a devoção do público para os 10 anos de estrada do CPM 22 – e esse ecletismo é a graça de um festival como é o Rock in Rio – nada se compara ao êxtase provocado pela banda norte-americana/armênia. Eu estive no Rock in Rio de 2013, no dia do show do Muse, e não tem como comparar com a experiência desse ano, muito maior, mais intensa, mais visceral.
Los Hermanos é uma banda incrível vivendo um período de dez anos sem lançar um novo álbum. Suas apresentações ao vivo passaram a acontecer a cada três ou quatro anos e são tão disputadas quanto finais de Copa… com a diferença de que com o excesso de procura uma data de show se transforma em mais uma, duas ou até três datas extras, como aconteceu no que seria uma apresentação como parte das comemorações aos 450 anos da cidade do Rio de Janeiro. Quanto ao set list o mesmo vale aqui, com um repertório de mais de 30 canções, englobando quase tudo dos seus quatro álbuns. Mas, ainda assim, eu senti bastante falta de Cara Estranho, estranhamente deixada de fora do repertório nas duas vezes em que vi o show, apesar de ter aparecido no bis do segundo dia de apresentações em São Paulo. E acho que daria para achar espaço também para “Tá Bom”, o difícil é tirar alguma, tendo em vista que todas as músicas executadas encontravam sintonia com a calorosa plateia, que em geral cantava a plenos pulmões música após música, independente de elas terem tocado nas rádios ou no Faustão, como a famigerada Anna Julia. Essa recepção ardorosa é uma prova inequívoca da devoção dos seus fãs à banda, que criou e firmou seu espaço com suas letras elaboradas, a liderança dupla de Camelo e Amarante dividindo amigavelmente o protagonismo no palco, um repertório que passeia por estilos, desde o pop-rock, o rock, o samba, à MPB e a bossa-nova, várias canções sem refrão e algumas que brincam com o conceito de refrão, arranjos que fogem do tradicional e o bom uso dos metais.
Depois de já ter comprado ingressos para o show no Rio, que exigiria viagem, descobri que também iriam se apresentar em São Paulo. Não tive dúvidas, comprei também! O show que vi em Sampa foi no Anhembi, na mesma data em que o Muse (olha eles aí de novo!) se apresentou no estádio Allianz Parque. Quem levou mais público? Sim, a banda brasileira, com mais de 30 mil presentes… recorde de público para eles. Mas quantidade nem sempre reflete em qualidade, como foi o caso aqui.
É aqui que entro na segunda parte deste 171: o público de shows musicais. Qual é o meu objetivo pessoal quando resolvo comprar um ingresso, em geral caro, e depois sair de casa – e às vezes até da minha cidade – para ir assistir uma apresentação de música ao vivo? Basicamente, eu quero ter a chance de ouvir o artista se apresentar e fazer parte daquela atmosfera única, de pessoas que se conectam pelo amor do artista e sua arte. Foi assim com os mais de 60 mil espectadores no Rock in Rio. Eu fui o mais próximo ao palco que consegui e certamente só parei quando encontrei com os fãs de carteirinha da banda, como eu. Cantamos todas juntos, nos esgoelamos, pulamos, sorrimos e choramos de emoção ao ouvir aquelas músicas, que tanto significam para nós e marcaram momentos de nossas vidas. É muito mais do que apreciar a técnica vocal ou instrumental, é uma catarse coletiva, é ter a chance de cultuar um ídolo e sua obra que é também nossa e que existe por causa de nós. Artistas nobres reconhecem isso, esse vínculo e dependência do seu público. Foi assim também, em menor grau, no Rio na apresentação do Los Hermanos e, antes no show de abertura, do Pato Fu. Aqui, aproveito para fazer um parêntese: é inadmissível que as duas bandas não tenham dividido o palco. Não faz sentido. Perderam uma excelente oportunidade de me agradar.
Pois bem, voltando ao show dos Hermanos em São Paulo, eu devo ter me posicionado mal, fiquei mais ao fundo e acabei sendo surpreendido por vários grupos de amigos, discutindo animadamente questões cotidianas, brincando e gargalhando, paquerando ou se queixando… tudo menos assistindo ao belo repertório que a banda apresentava, algo que destoava bastante do que o telão mostrava, com fãs chorando e cantando sem parar, lá mais próximos ao palco.
É difícil entender o que essas pessoas buscam ao ir a shows assim… certamente, mais para o fundo da plateia do Rock in Rio eu teria encontrado um pouco do mesmo, pessoas que querem mais dizer que foram do que estar realmente ali. Presenciar aquele momento é apenas uma parte do rito para poder durante e depois, em suas redes sociais e grupos de WhatsApp, compartilhar o feito. Não faz sentido pagar ingresso para ir papear, nem para ir acompanhar seu amigo que curte – e acabar assim com a experiência dele. Não, quem vai ouvir música quer ouvir música (e não bate-papos entre desconhecidos), quer cantar junto, quer fazer parte, ser um pedaço daquela apresentação única.
A cultura do status e das aparências vai deturpando comportamentos e, infelizmente, chegou aos shows musicais. E é claro que essas pessoas são mal-educadas e não estão nem ai se incomodam, se atrapalham ou se deveriam ter ficado em casa. O umbigo e a falta de noção falam mais alto do que os alto falantes mais possantes.
Mas que Los Hermanos, Pato Fu e System of a Down saibam que nós, os verdadeiros fãs, também estávamos lá. Fazemos parte do recorde, mas ainda mais importante: somos o verdadeiro recorte da admiração, da devoção, da catarse coletiva e do êxtase apaixonado pela música.
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