Fui ouvir sobre Java 8 mas tive uma outra lição
Cheguei hoje de mais uma viagem. Desta vez aliando uma visita familiar a uma conferência profissional. De um lado uma agradável estadia na casa de minha irmã, com direito de visita relâmpago da namorada no fim de semana; e de outro lado, quatro dias entre o centro de conferências e o hotel, assistindo várias palestras muito interessantes (outras nem tanto) e até mesmo palestrando em uma das trilhas do evento.
Mas o que realmente quero trazer para o 171 de hoje não são coisas como as descritas acima, a vida ordinária, comum, normal. Não me interesso hoje pelo cotidiano, a rotina de um domingo ou as aventuras de um dia de semana normais na vida de cada um de nós. É justamente a respeito do oposto disso que, de maneira absolutamente inesperada, fui convidado a refletir durante o TDC (A Conferência dos Desenvolvedores) de Florianópolis de 2014. Sobre uma vida sem sons.
Era já o terceiro dia do evento. A cada palestra que se encerrava começava o frenesi para escolher a próxima a assistir, um tema dentre as cinco ofertas simultâneas. Por vezes a decisão era difícil pela dúvida entre duas ou três boas opções, enquanto em outras vezes a dúvida era mesmo pela falta de opção. Pois bem, naquele sábado à tarde eu escolhi e entrei em uma das salas para sentar-me. O auditório já estava bastante tomado e avistei um local vago na segunda fileira. Sentei e comecei a prestar atenção na palestra que já havia começado.
Foi então que algo além da linguagem de programação Java, agora em sua versão 8, tema da palestra, passou a me chamar a atenção. Percebo que em minha frente um rapaz está sentado e ao invés de olhar para o palestrante e seus slides, ele mantém o olhar fixo em uma outra pessoa, em pé, à sua frente, gesticulando. Não demoro a perceber que trata-se de um deficiente auditivo e de sua intérprete de libras. Há uma tradução simultânea acontecendo ali, diante de mim. Depois de um tempo, a intérprete se senta e um outro intérprete levanta-se e assume o trabalho. São três pessoas trabalhando em conjunto para que um deles consiga assimilar aquele conteúdo da melhor forma possível, para que possa vencer essa sua limitação – e mostrar que na verdade não há limites para aqueles que perseveram e os que acreditam em sua missão na vida.
Naquele momento, eu não sabia a quem admirar mais. Em pouco tempo, apesar de o garoto com surdez ser uma escolha mais óbvia – é fácil simpatizar com aqueles que parecem ter mais dificuldades do que nós temos – achei tão belo e fascinante o trabalho dos intérpretes que minha escolha pareceu inevitável. Não que tenhamos que escolher uma coisa ou outra. Sem dúvida a luta do garoto por um lugar melhor no futuro, por educar-se, por conhecer é também bela. Mas, sem contexto, não é possível acrescer a esses fatos as dificuldades pelas quais ele passa, os sacrifícios pessoais – além dos óbvios – que ele precisou vencer para ali estar.
Já para Letícia Guebur e seu colega há, a meu ver, uma entrega que independe de contexto. No intervalo entre uma palestra e outra não resisti e abordei-os, dizendo admirar muito aquele trabalho, aquela dedicação. A missão daquelas pessoas era fazê-lo ouvir, era permitir que ele vencesse suas limitações. Eles sequer eram da área de computação e os termos técnicos eram, inicialmente, soletrados e depois um “código” era acordado para facilitar a tradução. Eu já estava fisicamente cansado do popular chá-de-cadeira, e podia assimilar eu mesmo, diretamente, as longas palestras de quase uma hora. Eu podia desistir de assuntos que estivessem menos interessantes ou não tão bem transmitidos. E eu podia decidir isso sozinho. Eles não, eles estavam ali para servir, para serem os ouvidos daquele garoto. Imaginem a satisfação que eles sentiam quando uma piada dita pelo palestrante conseguia ser transmitida ao ponto de fazer o garoto rir. Imaginem a gratificação ao vê-lo assentindo com a cabeça a cada novo conceito assimilado.
Eu não conhecia essa iniciativa da Universidade Positivo de Curitiba, e de seu Centro de Inclusão. Descobri-a ali, no evento, totalmente por acaso. Não sei o quão comum esse modelo é nas universidades públicas ou privadas brasileiras. No caso deles, há uma equipe de cerca de doze intérpretes que permitem a pessoas como aquele garoto cursarem, com qualidade, o curso de sua escolha. E isso só se torna possível graças a pessoas como Letícia, que se dedicam a aprender uma língua que é mais do que apenas isso, é uma ponte entre duas pessoas e entre essas e um novo mundo de conhecimento que se abre.
Publicado originalmente aqui.
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