Kilimanjaro – o topo da África

Kilimanjaro – o topo da África

Lá e de volta outra vez, começo este farelo como toda narrativa de jornada deveria ser iniciada. Neste farelo aqui eu comentei que já era uma vitória estar na África, em Arusha, pronto para começar a subida rumo ao topo da África, o ponto mais alto daquele continente, o cume do monte (ou vulcão) Kilimanjaro, a exatos 5895 metros de altura. Pois é isso, fomos até lá, ao cume do Kili, e agora estamos aqui, de volta outra vez. O que eu tenho para contar desta experiência? Bom, neste farelo eu vou falar da jornada apenas do ponto de vista emocional, depois eu posso até escrever um farelo mais técnico falando sobre o desafio em si, os preparativos, as dificuldades, etc para servir de dicas para eventuais aventureiros que caiam de paraquedas por aqui.

A primeira observação que faço é sobre o povo africano, dono de uma alegria de viver invejável, principalmente tendo em vista que a Tanzânia (e ela é só mais um exemplo) convive com extrema pobreza, desigualdade, falta de oportunidades, corrupção e doenças como malária ainda assolando a população que tem pouca comida, pouca água, poucas estradas, quase tudo lá é pouco, mas ao menos pudemos experimentar com abundância o que eu disse acima: um povo alegre, musical, brincalhão, solícito, educado e bem-humorado. E essa convivência próxima a equipe da empresa Everlasting fez a experiência ser ainda mais fantástica. Para eles, o Kilimanjaro é mais do que um parque nacional, ou uma montanha ou vulcão, ou uma atração turística, ele é uma fonte de trabalho, de sustento, de devoção, de agradecimento. Sendo assim, é natural que se sintam felizes de honrarem a natureza e a dignidade humana levando semanalmente pessoas para o cume do monte, e ensinando com sua sabedoria e paciência, o que é necessário para que esse objetivo seja atingido: dedicação, paciência e vontade.

Sim, pois uma grande preocupação minha de leigo antes da viagem era quanto a minha preparação física. Eu tentei treinar um pouco, mas não imaginava o que me esperava. Um amigo meu em conversa de bar ouviu de outra pessoa na mesa, aventureiro e mais experiente com montanhismo, que “qualquer um pode escalar o Kilimanjaro, com um pouco de treino”, que é tarefa para pessoas normais. Do ponto de vista técnico e físico, é verdade. O que eu descobri lá, no entanto, é que esses dois aspectos são os menos importantes. Para escalar aquela montanha, aqueles quase 6km verticais e jornadas diárias sempre superiores a 10km horizontais durante cinco dias, com cada dia menos ar disponível e mais frio, com trilhas acidentadas e em certos pontos bastante escorregadias, o que se precisa muito é querer cumprir aquele objetivo… pois o pensamento o tempo todo é de “porque cargas d´água eu vim até aqui?”, pois o desafio é o castigo a que nos submetemos, apesar da bela paisagem, apesar da boa companhia dos outros aventureiros a que nos juntamos, apesar do ótimo guia (Manoel Morgado, não dá para imaginar alguém melhor com quem passar uma semana em uma montanha) e de toda a equipe local. É sofrido, é duro, é exigente e o pensamento de desistir e se dar por satisfeito com uma “conquista parcial” acontece. Para seguir, é preciso querer muito. E também é preciso ouvir e seguir os três principais conselhos: siga o seu ritmo, siga devagar e sempre e, o principal deles, não é só o cume que interessa, desfrute da jornada.

Com tudo isso em mente seguimos dia a dia da de expedição, com trilhas diárias longas e cada vez ganhando mais altura, acampamentos noturnos com frio cada vez maior e menos ar disponível, logo com desconforto aumentando, mas com vistas encantadoras para todo o vale do Kilimanjaro e do Mawenzi, o outro monte/vulcão que também embeleza a região. A partir do terceiro dia já estávamos sobre as nuvens, que faziam um enorme tapete que se alinhava até onde a vista podia alcançar o horizonte. Um espetáculo. Eu brinco que urinei ao ar livre nos lugares mais bonitos que eu podia imaginar, vai ser difícil encarar os banheiros fechados de novo.

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O chamado dia de cume foi algo que, quando eu descrevo eu não acredito que eu vivenciei – e sobrevivi. As 23h do sábado, dia 13 de agosto, a Gi e eu iniciamos a subida, fomos os primeiros do nosso grupo a partir, por termos um ritmo mais lento do que os demais. Fomos acompanhados por nossos dois anjos de guarda, os guias locais Frank e Agostin, de quem ouvíamos frases que nos marcaram e que repetimos constantemente desde então, o clássico “pole pole” (devagar, devagar), mas também “no pressure, no competition”, dito para que não pensássemos em nada ou ninguém, o objetivo era pessoal e o prazer de completar o desafio deveria vir em primeiro lugar, antes das ansiedades e inquietudes que poderiam atravessar nossa cabeça – e a chance de não conseguir, naturalmente, gera ansiedade e inquietude.

Subimos, com pouquíssimas e rápidas paradas, até chegarmos ao alto, por volta das 7h15, sendo os últimos de nosso grupo de 7 pessoas a chegar ao cume. Primeiros a sair, últimos a chegar. No trajeto até lá vivemos uma quase desistência (superada, com muito brio e persistência, pela Gi), muito frio e muita dor, muito sono – afinal, era uma noite inteira que deveríamos seguir sem dormir – com oxigênio abaixo de 50% do que estamos habituados ao nível do mar. Ainda durante a subida, devido ao nosso atraso, vivemos a emoção de ver o sol nascer em meio às nuvens, todo vermelho, uma bola de fogo surgindo em meio àquele mar branco, um espetáculo inesquecível que registramos em nossa memória e também em poucas e rápidas imagens em meio a mais uma das paradas. A mão, fora das luvas, congelava rapidamente. O sono fazia com que as paradas servissem para cochilos, o que não era recomendado. Precisávamos seguir, mas o que vivemos naquela subida de pouco menos de 1km vertical durante aquelas pouco mais de 8 horas vale para toda a vida.

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Todo o cansaço, todo o esforço, toda a dor, todo o sono, como que desaparecem substituídos pela euforia quando finalmente se chega lá. Foi lindo, foi maravilhoso, foi emocionante, fomos às lágrimas. A Gi e eu, abraçados, chorando, rindo, quase que não acreditando que tínhamos conseguido, que o nosso sonho sonhado junto tinha um final feliz, ao final. Que a preparação corrida, com os últimos equipamentos sendo comprados nas últimas semanas pré-viagem, a fisioterapia para o joelho dela terminando com menos de um mês para a viagem, os preparativos físicos tendo começados há apenas três meses da viagem… íamos revivendo todo o percurso desde o início do ano, quando falei pela primeira vez com ela sobre este plano maluco, até ali, naquele momento em que nós dois juntos pisamos na borda do vulcão e vimos a plaquinha “Parabéns, você está no Gilman’s Point, a 5685”. Não tinha como conter, foi lindo viver aquele momento mágico, de amor, de celebração da vida, de realização, de sonho.

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Este ponto, no entanto, já é cume pois está na borda do vulcão e dali pode-se ver a cratera e parte do glaciar que habita – cada vez menor – o topo do Kilimanjaro. Mas, para mim, motivado pelo Morgado, nosso guia, ainda havia mais um passo a ser dado. Convencido por ele que seria possível, despedi-me da Gi e segui com ele em busca do pico, do monte Uhuru, o ponto mais alto da borda do vulcão – e de todo o continente africano. Foi mais de uma hora de trilha dali e por volta das 9h eu alcancei mais este objetivo, agora já secundário mas também muito emocionante, uma realização pessoal, uma prova para mim mesmo de que era sim possível, de que eu podia. Um agradecimento especial ao Manoel, que fez esse gesto caridoso por mim, me acompanhando até lá depois que todos os outros já haviam atingido seus picos. Eu, o último a chegar, tive a chance de seguir com ele até lá pois ele acreditou em mim e me deu a motivação que faltava. E só por conta disso é que eu fui e a isso sou grato.

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Porém, sem dúvida, para mim o que fica é o nosso cume, o Gilman´s, pois foi ali que eu vivi meu sonho e o da minha esposa, foi ali que juntos a superação se deu e a conquista foi alcançada. De novo, obrigado por me fazer tão feliz e por dividir seus sonhos comigo.

Djambo, Vida!

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Paulo Farelos

Deixando alguns farelos para seguir meu caminho… com essa frase, inspirada em conto infantil essa frase marcou o início do projeto Farelos de Pensamento. Este espaço agora não guarda mais apenas pensamentos soltos mas também todos os meus textos que antes estavam espalhados por aí, em meu outro blog, no qual não vou mais escrever e de onde, aos poucos, vou puxar todo o conteúdo também para cá. Mas aqui também vão ter minhas resenhas para filmes e trailers, as minhas crônicas e textos, meus podcasts, meus vídeos. Assim, como meus interesses culturais passeiam pela literatura e os quadrinhos e se concentram com mais força em música e cinema pops, ainda que o circuito de arte também me desperte interesse, então os farelos de pensamentos passaram a ser farelos de qualquer coisa, pois vivo muito de blá-blá-blás e outras amenidades diversas. Um farelo para cada um desses momentos. E o caminho segue. E há tantos caminhos possíveis.