O Homem-Predador
A promessa era a de que o mundo passaria a ter outro colorido, talvez até menos dolorido. A promessa era de que o nosso olhar seria mudado, talvez um pouco menos acomodado. A promessa era a de ver o belo no cotidiano, fazer valer mais cada ano. A promessa era a de que não há um compromisso, mas também não cabe sumiço.
A cada quinze dias a promessa é a de trazer um novo texto aqui para o 171. E, de fato, essa promessa altera nosso olhar, faz com as coisas que antes passavam desapercebidas, agora tenham um outro ar, uma outra força. Mas, ao mesmo tempo, já lá se vão alguns meses em que as minhas contribuições com esse espaço têm sido paridas na véspera – ou até mesmo no próprio dia, como o texto de hoje. A busca pelo tema ideal, pelo conjunto de ideias e reflexões que melhor caracterizam a última quinzena vivida é tudo menos trivial.
Vejamos, eu poderia discorrer sobre o longo feriado, sobre o ritmo mais lento ao qual impus meus últimos quatro dias, passados em repouso, na quietude do lar, do sofá, do violão, do videogame. Mas acho que eu já falei disso quando voltei do Carnaval… não, eu precisava de uma inspiração mais nova, mais original. Mas oras, ainda ontem eu assisti ao belo filme “Agônia e Êxtase”, clássico de Carol Reed com Charlton Heston e Rex Harrison sobre a execução da Capela Sistina por Michelangelo. Esse é um belo exemplar que permitiria não só falar de história da humanidade e das artes, como um pano de fundo para uma discussão ainda maior sobre a vaidade humana, nossas rivalidades e lutas de ego e a eterna busca pela inspiração e pela expressão inata aos grandes artistas. Porém, sabe Deus porquê, eu nunca acho esses temas apropriados a esse espaço e nem me vejo a altura para tão elaboradas discussões.
Pois é, mas o dolorido compromisso chega, como sempre chegam os fins dos feriados. Cabe a mim e a você, agora, diante dele, buscar a inspiração para fazer valer o novo dia, a nova semana. Para cumprir com nossas obrigações. Pois é. Para cumprir a minha vou tentar articular aqui confusos pensamentos que me ocorreram durante o feriado e que tem a ver com o nosso mundo capitalista de todo dia.
Era um domingo, mas era também um recheio do sanduíche entre o sábado e o dia de Tiradentes. Já era o terceiro dia inútil consecutivo. Acho ótimo o conceito de “dia útil”, usado pelos bancos e sites de entrega, como se meus fins de semana não valessem nada. Mas divago, voltemos ao último domingo, 20 de abril. Estava assistindo Campeonato Brasileiro, a tenebrosa estreia do meu verdão, perdendo para o temido Criciúma jogando no sul do país. Era o jogo das 18 horas, era muito mal jogado e meu time perdia, mas ainda assim eu esperei o jogo acabar, o Palmeiras virar (é importante ganhar, mesmo jogando mal) para só então sair para comprar as coisas que faltavam para o café da manhã do dia seguinte. Fui então até um mercado aqui do bairro onde moro, famoso pelas suas hortifrúti. Cheguei lá pouco depois das 21h, comprei frutas, pão, queijo e outras coisinhas e voltei para casa.
O que há de errado com a narrativa acima? Nada? Eu acho que há algo de errado ai, e é o simples fato de enquanto eu estar desfrutando de um dia inútil, com direito a futebol de várzea na televisão, várias pessoas estavam lá, trabalhando, esperando eu terminar de nada fazer para ir me abastecer de produtos que eu podia ter comprado antes, se eu não soubesse que, “ainda bem”, todo o mundo das comodidades está a minha disposição, pois “eu mereço”. É evidente que eu enxergo a geração de emprego e o fato de os hortifrúti não serem produtos de fácil conservação, mas há ai nas conveniências do nosso mundo capitalista afora uma série de injustiças e inversões de valores, um menosprezo facilmente aceito ao direito do outro em também descansar, em também passar os feriados e fins de semana com os seus.
De volta à minha inutilidade, eu assistia um programa sobre felinos em um desses canais de documentários sobre a vida animal e ouvia sobre o comportamento social do leão, que ao contrário dos outros grandes felinos, é um ser social, vive e caça em grupos de até vinte indivíduos. Por caçar em grupos, consegue abater presas maiores e é muito eficiente em suas emboscadas. Isso dá a eles a possibilidade de viver cerca de 20 horas de seus dias em completa inutilidade. Sentados em roda, dormindo, conversando, contando causos. Nas outras 4 horas o grupo trabalha. E isso basta para o estilo de vida deles. 20 horas de ócio por dia. Agora eu aproveito para perguntar: e se eles também passassem a viver pensando como nós? Imaginem os leões pensando em abater mais e mais presas para vender o excedente de carne para os outros bichos! Para aqueles que também são bons caçadores teriam que ter bons preços, oferecendo a comodidade e a falta dos riscos. Para aqueles que não sabem caçar, poderiam aumentar um pouco sua margem de lucros. Para os mais abastados, como os grandes elefantes donos do marfim, poderiam oferecer iguarias a preços exorbitantes. É evidente que tal comportamento iria alterar completamente a cadeia alimentar da vida selvagem, criaria castas mercantis e levaria várias espécies ou à escravidão ou à falência (leia-se, extinção).
Ainda bem que no mundo moderno cabe só ao homem esse tipo de predação.
Publicado originalmente aqui.
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