O que eu tenho de mais antigo?

O que eu tenho de mais antigo?

Você mora na mesma casa em que nasceu? Eu não, eu já morei em tantas casas… meus pais se mudaram quando eu tinha cerca de um ano, lembro-me de morar em pelo menos quatro locais diferentes antes de mudar-me para a casa onde minha mãe mora até os dias de hoje, a casa que aprendi a chamar de “minha”… até que eu me mudasse, de lá para estudar fora, e aí contaram-se mais várias e várias casas, em diferentes cidades e até países, até que eu estivesse onde hoje eu estou.

E foi assim, depois de tantas mudanças, que um dia desses eu estava aqui em casa, no cômodo que carinhosamente chamamos de “quarto da música” e olhei para um objeto anacrônico: um aparelho de som. Trata-se de um xodó meu. Eu o comprei com os salários guardados depois de alguns meses trabalhando no meu primeiro emprego, ainda bem antes dos 18 anos. É um aparelho com carrossel de cinco CDs, ainda tem toca vinil, espaço para dois decks de fitas K7, com a possibilidade de gravar o conteúdo de uma delas na outra, além de pegar FM e AM… E é enorme, ocupando um espaço significativo em qualquer ambiente, com suas caixas de som de madeira e seus vários andares empilhados. Eu já o mandei consertar em duas cidades diferentes, e por mais de uma vez… e ele voltou a dar problemas. Tenho que procurar agulha para ver se ainda consigo reproduzir os poucos vinis que ainda tenho, pois da última vez que tentei a música engasgava depois de poucas rotações.

Mas, ele é meu xodó. Tenho apego. Tenho um enorme carinho por aquele objeto. Já o carreguei de Costa Rica para Campo Grande. Em Campo Grande, entre várias casas… de lá trouxe para Campinas e agora para Osasco… são mais de 20 anos com ele, que já fez parte de tantos momentos de minha vida, já tocou canções felizes e tristes, já me fez pular e já me fez pausar, sendo assim, apesar de tudo, chegou a hora de jogá-lo fora? O que ele representa para mim?

Foi diante dessa encruzilhada mental que comecei a me perguntar: será esse aparelho de som o objeto mais antigo que eu carrego comigo? Certamente, eu não tenho nenhuma peça de roupa da época que tinha 14 anos… eu ainda tenho minha coleção de livros, revistas e CDs, mas eles se acumularam depois… Os vinis que eu guardo vieram, obviamente, depois do aparelho… com exceção daqueles que guardei e que ficaram como herança do meu pai, assim como o violão e o teclado musical que eram também dele e que estão também aqui, comigo. Tenho um bau (relativamente novo em minha vida) onde guardo escritos de várias épocas… talvez lá tenha algo, uma carta escrita à mão – já se fez isso, sabe? – que seja mais antiga do que o som, mas eu duvido… será que aquele aparelho de som é o meu objeto mais antigo? Dos que eu comprei, estou seguro… levando em conta os que ganhei, não por conta dos itens de meu pai, mas desconsiderando essa herança, acho que também não tenho nada mais antigo…

E foi assim, pensando e tentando voltar no tempo e nas memórias, que comecei a entender a importância que a música sempre teve em minha vida: aparelho de som, coleção de CDs, vinis, violão do meu pai, o seu teclado, o novo violão, um novo teclado… boa parte dos objetos que eu colecionei na vida são relacionados a música e eles devem dizer muito sobre mim, pois eu não consigo me desapegar deles, como a lista acima deixa claro. Será então que o que eu tenho de mais antigo não é só um aparelho de som de quatro andares… eu tenho uma paixão mal resolvida pela música que ainda precisa de mais dedicação minha para que eu volte a degusta-la e também que eu possa encantá-la com minhas próprias canções?

Se for assim, e eu gosto de buscar símbolos nas minhas reflexões, não é ainda hora de jogá-lo fora, mas sim de tirá-lo do canto empoeirado do quarto da música e de fazê-lo ressoar novamente, para que a música cresça e possa ocupar o seu lugar, para que o que eu tenho de mais antigo transcenda a minha própria existência e não seja mais apenas um objeto, mas um novo momento de integração entre eu e a música, que isso possa me reconectar ao meu falecido pai, potencializar a graça da companhia de minha mãe, estender seus laços para a minha família, meus amigos, para que eu possa compor e cantar as mais belas canções para a minha amada esposa, para que também minha voz tenha posse de meus pensamentos, para que eu possa reproduzir a emoção das canções que eu gosto, é para tudo isso que essa reflexão me alça, para o poder de trazer o que é mais antigo para o dia de hoje – que afinal, é a única coisa que há.

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