Os limites da auto-preservação
O tema do 171 de hoje é um tanto espinhoso, complicado, conflituoso e até, por que não, desnecessário. Mas são tantas as coisas da vida que não tem necessidade – no sentido estrito da palavra – e nem por isso deixamos não só de fazê-las mas também de valorizá-las. Se a auto-preservação no sentido que tentarei aqui descrever for necessária, ainda assim ela deve ter limites, para não ser prejudicial ou, ainda pior, nos cegar.
Vamos lá então, qual é o comportamento que estou chamando de “auto-preservação”? Não é o sentido usual da palavra, que tem a ver com a vontade inerente aos seres vivos de manterem-se neste estado, de garantirem sua integridade física. A auto-preservação à qual me refiro é aquela na qual o comportamento justifica-se como necessário por proteger a nossa integridade psicológica ou moral. Para exemplificar, imagine que alguém passou por um trauma, por exemplo tome uma criança que perdeu seu amado cachorro com quem vivia desde sempre. Seria aceitável, como forma de auto-preservação que ela passasse a dizer – e acreditasse – que na verdade, sua convivência com o cachorro não era tão boa quanto sua memória diz, apenas para que a sua perda fosse amenizada? Ou será que, neste caso, a criança teria ultrapassado os limites saudáveis da auto-preservação e que seria melhor ensiná-la que a vida é curta, que o tempo que passaram juntos foi especial para ambos e que é necessário dar ao cão que partiu a importância que ele merece, ao invés de desdenhar dele para arrefecer sua própria dor.
Essa delicada questão me pareceu importante pois cada vez percebo uma tendência nas pessoas (e eu sou uma delas) de acomodar o mundo às suas necessidades. Já não vemos mais os fatos como eles são, mas damos a eles uma visão reconfortante que se acomode melhor aos nossos anseios e vontades. Esse fator associado às vaidades cada vez mais latentes produz vários fenômenos irritantes em nossa sociedade. Aquele amigo que nos indica uma leitura legal vira um esnobe querendo se exibir com seu ar intelectual. Aquele chefe no trabalho que nos cobra uma postura mais ativa se transforma em um monstro abominável que não consegue ver meu valor. Aquele companheiro que se preocupa, constantemente, em saber como estamos passa a ser, de repente, um curioso que não sai de nosso pé. Porque o mundo tem que girar ao nosso redor e, além disso, como se não bastasse sermos o centro das atenções, ainda temos que nos convencer de que se erramos tínhamos excelentes motivos para tal, mas que se erraram conosco não são merecedores de segundas chances. E um mundo cheio de intolerantes prolifera. Estou certo de que misturo um pouco os assuntos com esses exemplos, mas estou também seguro de que há uma ligação destes com a tal auto-preservação psicológica. Se não erramos, não precisamos pedir perdão. Se o mundo conspira contra nós, não há porque duvidarmos de nossa capacidade. Segundo essa lógica auto-preservacionista, se as coisas não derem certo em nossas vidas é apenas mais uma constatação do mundo cão em que vivemos.
Eu acho que já basta. Eu lanço aqui um manifesto para que a gente seja menos conservador quanto a nós mesmos e nossa visão de mundo. Para que a gente pare de olhar tanto para o próprio umbigo. Que a gente deixe de ver e apontar nos outros os defeitos que zelamos tanto em nós mesmos. Que não ocultemos as verdades de nosso comportamento apenas para nos sentirmos bem ou para defendermos nosso ponto de vista. Não, ao contrário, espero que a gente – e eu, principalmente, possa reconhecer quando erramos. Que só apresentemos nossos argumentos quando estivermos seguros de que de fato acreditamos no que dizemos e, além disso, de que essa verdade fará a outra pessoa também melhor e mais consciente. Como li um dia desses, “a paz que você procura muitas vezes está no silêncio que você não faz”. Enfim, espero que os limites da auto-preservação sejam diminuídos para que haja menos espaço para distorções, maledicência e egoísmo. Se ao menos aderir ao meu manifesto, o meu mundo já será bem melhor – e isso basta.
Publicado originalmente aqui.
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