Parceria na doença, seja na velhice ou na juventude
Dois filmes não tão diferentes mas ligados apenas pela mais pura coincidência. Assisti o tocante, duro e cruel Amour, de Michael Haneke, no cinema na última sexta-feira. E hoje assisti 50/50, na pequena tela do computador. O primeiro, ganhador da última Palma de Ouro em Cannes, relata a difícil convivência de um casal na velhice e com dificuldades de saúde, principalmente depois que um AVC deixa Anne (Emmanuelle Riva, excelente!), a esposa, em uma cadeira de rodas. 50/50 relata as dificuldades que um jovem de 27 anos passa ao descobrir-se com um tumor na espinha dorsal. O primeiro título, Amor, descreve muito bem o sentimento que une aquele casal em toda a dificuldade que um septagenário pode ter para cuidar de sua companheira por toda a vida, ainda que ela preferisse não causar tais aborrecimentos e recuse-se, em certos momentos, a receber tais cuidados. O segundo título, 50/50, descreve a percentagem de sobreviventes entre as pessoas com a mesma doença, ou seja, Adam (Joseph Gordon-Levitt, muito bem) tem iguais chances de sobreviver ou de morrer. E ambos os filmes mergulham, principalmente, em como tais fatos alteram totalmente a rotina e vida não só dos enfermos mas também de seus próximos.
Amour é um filme seco. Parece nos querer fazer sentir como, na velhice, a vida passa em um ritmo absolutamente lento. A vida segue, caminha para seu fim e não há nada que possamos fazer ainda que nada aconteça. As pessoas que cruzaram nosso caminho seguem suas vidas. O ex-aluno é grato. A filha se preocupa. As enfermeiras fazem seu trabalho. O vizinho ajuda a carregar as compras. Mas, em essência, apenas o casal resta. Um pelo outro. Até que um começa a falhar. Inicialmente como apenas mais um problema, um lapso de memória. Logo mais, cadeira de rodas e necessidade de atenções especiais para toda e qualquer atividade corriqueira. Um pouco mais além, até mesmo a comunicação torna-se difícil. E é a todo esse processo final que somos convidados a assistir. Ainda que não possamos ajudar e, sabendo, que nem Anne e nem Georges (Jean-Louis Trintignant, soberbo!) nos deixariam. O respeito que Georges nutre pelas últimas escolhas de sua esposa são admiráveis. Reclusão, não exposição de sua decadência e aceitação do fim. O amor tem uma face dura e crua, quando não mais nos resta energia para viver, quando o corpo quer dizer adeus. Amour é um filme forte e difícil, mas que merece ser visto. Leva, naturalmente, a reflexões sobre o futuro e a velhice, o que é um tema tão pouco explorado pelo cinema. E mostra que o verdadeiro amor é aquele da sinceridade, do respeito e do companheirismo, ainda que seja com o custo de dividir suas últimas interações humanas com um pombo.
O casal central de atores está estupendo em seus papeis. E não deve ter sido fácil interpretar algo que tão cruel e, ao mesmo tempo, tão próximo do que podem experimentar em suas vidas a qualquer momento. E a ausência de vaidade dos atores e a completa entrega aos seus papeis é comovente por si só. O filme tem diversos trechos memoráveis: o abraço entre homem e a vida presa, as danças nada românticas de quem não consegue se sustentar em pé, os exercícios e as histórias para fazer companhia, a asfixia que a dor da perda causa. É um filme repleto de silêncios que dizem mais do que mil diálogos. É um filme triste sobre o mais alegre dos sentimentos. A face oculta da moeda. O fim.
Em 50/50 acompanhamos com menos intensidade a relação de Adam com 4 personagens importantes: sua mãe (vivida com vigor por Anjelica Huston), que já vive com o seu marido uma relação parecida com a do filme Amour; seu melhor amigo Kyle (Seth Rogen, cheio de energia e vigor para o papel), com quem trabalha e também com quem passa a maior parte de seu tempo livre; Katherine (Anna Kendrick, jovem e muito talentosa), a jovem terapeuta que tenta o auxiliar na aceitação da doença e, finalmente, Rachael (Bryce Dallas Howard), a sua namorada, uma artista plástica ainda em busca de sua afirmação profissional e que se vê com um namorado que exigirá dela cuidados e atenção muito maiores do que a princípio ela imaginara.
Confesso que 50/50 ganhou muito mais força, para mim, pois assisti Amour antes. Ver esses personagens tão jovens e com tantas dúvidas e indecisões, as pulsões sexuais de Kyle, a busca por um amor maduro de Adam, o egoísmo e falta de auto-confiança de Rachael e o automatismo-robótico de Katherine ao cuspir palavras técnicas ou gestos programados tem muito mais impacto quando temos, como contraponto, o filme de Haneke. É uma rima que foi ocasional, mas que fortaleceu e muito a minha percepção dos dramas explorados. Principalmente ao olhar como se dá o relacionamento de Adam e sua “companheira” Rachael, em um desenvolvimento também bastante cru, sem julgamentos e muito interessante. O amor pode ser um fardo, seja aos 27 ou aos 70, o que muda são nossas perspectivas.
Não que 50/50 não tenha seus méritos. Além dos trabalhos dos atores que é muito bom, duas passagens específicas são muito bem construídas. A descoberta do valor e do peso da amizade que une Adam e Kyle, em uma cena sem diálogos em que um descobre um objeto importante na casa do outro, me tocou profundamente. E a cena da visita de Kathe ao hospital, em que finalmente ela se livra do automatismo e demonstra seus sentimentos de forma natural também é muito bonita. Sim, 50/50 é um bom filme. Não há, contudo, como compará-lo a Amour, muito mais duro, seco, agreste, cru e real. 50/50 ainda é Hollywood.
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