Putucusi
Viajar é sempre interessante. Conhecer novos lugares, novas pessoas, aprender e ensinar notando as diferenças e semelhanças e buscando comunicação com nativos ou outros turistas. Viajar com amigos pode acrescentar mais alguns fatores de apreciação, como o resgate de um saudoso carinho adormecido, como o respeito e admiração crescentes de se notar as fascinantes histórias de vida dessas pessoas que ajudam-nos a escrever a nossa própria.
Esse era o espírito quando Maninho, Gauchinho e eu aportamos, naquela tarde de domingo, na cidade-povoado de Machu Picchu, no Peru. A visita ao santuário arqueológico inca só ocorreria no dia seguinte, tínhamos a tarde livre. A primeira missão era achar o hotel, o que tomou muito mais tempo, energia e paciência do que imaginávamos. O guia que ia nos buscar na estação de trem não apareceu, ninguém na cidade parecia saber onde era o hotel onde tínhamos a reserva – mau sinal, é claro – e quando finalmente o vimos, na parte alta de uma rua inclinada e não pavimentada, não tínhamos ideia do que o restante do dia nos havia reservado.
Começa assim, com nós três deitados no quarto triplo e apertado, no terceiro andar sem elevador do hotel em que a família que lá trabalhava se preocupava muito mais com a programação da TV do que com os hóspedes. Um de nós lança o comentário “Pois é, nosso guia falou que dá para escalar uma montanha aqui do lado, de graça, e que lá em cima dá até para ver Machu Picchu”. Naquele ponto já estávamos há uma semana no Peru e há alguns dias sofrendo os efeitos do ar rarefeito da altitude. Andando praticamente o dia todo, deslocando-se em ônibus e vans, dormindo pouco. Era apenas a metade das férias, com mais uma semana pela frente e um dia seguinte que deveria ser o auge da viagem, a visita à famosa cidade inca encravada na montanha, deixava-nos repletos de expectativas e dispostos a acordarmos com a bateria cheia para que o aproveitamento fosse máximo.
Mas que mal faria dar uma espiadela em Machu Picchu um dia antes? Não tínhamos conseguido reservar a subida a Huayna Picchu e subir a tal montanha do povoado, Putucusi, parecia uma boa alternativa para preencher uma tarde vazia. Convencidos, saímos do hotel em busca de mais informações. A todos que abordávamos, a mesma resposta, era só seguir a linha do trem, havia uma trilha e seguindo por ela teríamos o prêmio de avistar a cidade mítica.
Compramos água, damasco para repor a energia e seguimos o caminho indicado. Achar a trilha foi fácil, não havia mistérios. Ali, naquele ponto, nós três demos os passos iniciais de um trajeto que mudaria aquele passeio para sempre. Maninho é aquele cara sábio e responsável, com uma visão de mundo própria e abrangente ao mesmo tempo, aquele tipo de pessoa a quem a gente costuma procurar quando não sabe o que fazer. Gauchinho, por sua vez, encobre parte de sua sabedoria e responsabilidade com sua postura brincalhona, com uma piada ou uma história sempre na ponta da língua. Ele, melhor do que ninguém, sabia que ao olhar para a sua própria história pessoal, seus quilos a mais e seu recente histórico cardíaco estava dando passos arriscados naquela montanha peruana a mais de dois mil metros do nível do mar. Já eu, como costuma acontecer, estava vivendo o momento sem pensar em históricos ou em projeções, procurando extrair daquela experiência o máximo que ela tivesse a oferecer.
À medida que íamos subindo e nos afastando do povoado ficávamos excitados, olhávamos para trás, batíamos fotos para mostrar como estávamos altos, como a cidade estava distante. Em um determinado momento o Maninho vira para a montanha vizinha e aponta o que parecia ser uma trilha. A montanha não estava próxima, peguei minha câmera e dei o maior zoom disponível. Cliquei. Pegamos a foto e ficou claro que era mesmo uma trilha. Era a trilha que leva à porta do Sol. A cidade de Machu Picchu ficava ao fim daquela trilha. Ampliamos a própria foto e conseguimos ver pessoas fazendo a trilha, naquele ponto confirmamos mais uma vez que aqueles dias seriam especiais. E seguimos trilha acima.
Gauchinho e eu ficamos um pouco para trás quando, de repente, ao alcançarmos o Maninho vemos que ele está gargalhando e apontando para algo. Subimos até ele para ver o que provocou aquela reação e nos deparamos com uma escada vertical, colada na pedra da montanha. Subir aquela escada é quase como uma escalada, temos que puxar o peso de nossos corpos pelos degraus acima. Oras, já que chegamos até ali, vamos lá. Maninho à frente, eu em seguida e Gauchinho logo após subimos o primeiro lance de escada, para logo descobrir um segundo, ainda mais alto, logo a seguir. A distância entre nós começava a ficar maior, dadas as diferenças de estado físico.
Quando, finalmente, chegamos os três ao final do terceiro lance de escadas, encontramos um casal de nativos descendo. Pergunto a eles “Já estamos chegando?” e ouço um desanimador “Não, ainda falta, sei lá, umas sete vezes o que vocês subiram até aqui”. Para completar, eles ainda dizem “E não é bom vocês começarem a descer depois das 16h30, pois escurece cedo nessa época do ano.” O relógio marcava algo como 15h30 e até ali já tínhamos gasto por volta de meia hora no trajeto. Racionalmente, se as informações fornecidas pelos peruanos fosse fidedigna, era hora de dar meia volta e desistir. Fizemos uma breve deliberação e o resultado foi uma separação do grupo. Gauchinho decidiu ficar, curtir dali o belo visual do povoado, talvez subir um pouco mais, talvez não, e depois descer. Maninho e eu achamos que daria para tentar ir além, sair fora da área em que estávamos, onde não podíamos sequer visualizar o topo da montanha. Pensamos que era necessário sair dali para ao menos poder medir se a informação era verdadeira e estimar melhor o tempo que seria necessário para chegar ao topo de Putucusi.
E assim foi feito, subimos entristecidos de deixar o companheiro para trás, mas convencidos de que o esforço que tínhamos empregado até ali e a reserva de energia que ainda dispúnhamos valeria ao menos uma nova tentativa. Os passos foram se acumulando e junto com eles o cansaço, a fatiga, o peso do corpo cada vez que era necessário elevar um pouco mais alto a perna para continuar subindo. Pontes de madeira e mais muitos metros adiante saímos de dentro da mata que protegia a vista e nos demos conta de que ainda havia, sim, muita trilha pela frente até o nosso alvo, o mirante ao topo da montanha. A primeira constatação do Maninho, muito mais experiente neste tipo de aventura, foi de que precisaríamos talvez de 45 minutos, talvez mesmo de uma hora para chegarmos até lá. Tempo este que, julgando pela previsão para o início do entardecer, não tínhamos.
Subimos um pouco mais, ainda assim até que, surpreso, ouço desolado a desistência do Maninho. Também para ele a estimativa do esforço restante pesado contra o tempo disponível tornaram a subida uma alternativa inviável. Houve breve negociação. Deveria eu descer? Deveria tentar convencê-lo a continuar sozinho? Arriscaria subir sozinho, ainda que com o receio do crepúsculo que não longe chegaria? Pois bem, subi com a promessa de não ir muito além dos 15 minutos e descer o mais rápido possível. Até 16h30 ele estaria ali a me esperar, para descermos juntos. O relógio já ia além das 16h.
A subida final solitária passou a ser um martírio. O corpo já não queria responder. A água já estava no fim e faltava forças até para mastigar o damasco desidratado. Olhava para trás e não mais via o local onde deixara meu irmão. Olhava para a mata, ainda mais abaixo, e tentava encontrar o ponto provável onde o Gauchinho ficara. Desistir, desistir, voltar, voltar agora. Não conseguia pensar em mais nada e já estava prestes a dar meia volta quando, novamente, um casal de nativos, com uma invejável desenvoltura, se aproxima de mim, voltando do topo. Pergunto, meio sem querer ouvir a resposta: “Tá longe?”. Muito simpáticos, os dois me dizem que não, que o topo está a no máximo dez minutos e que eu não podia desistir ali, tão perto. Que a vista de Machu Picchu é muito recompensadora e que a descida é muito mais rápido e fácil. Entardecer as 16h30? Balela, dizem eles, se eu iniciasse minha descida as 17h00 ainda chegaria lá em baixo com luz do dia.
Diante de uma mudança de perspectiva tão positiva, reuni o restante de minhas forças e me arrastei até o fim da trilha. Emoção ímpar, chegar sozinho lá e sozinho lá ficar. Não havia ninguém, apenas eu, o alto de Putucusi com suas grandes pedras e Machu Picchu ao longe, numa visão impagável. Ajeito a câmera sobre a pedra, bato auto-retratos. Olhando-os hoje em dia vejo o cansaço daquela subida estampado em meu rosto, sobrepujando a minha alegria e satisfação de ter alcançado a meta do dia, cada dia uma vida. Quando dou por mim, mais três pessoas chegam também até lá. Um casal suíço em lua-de-mel, acompanhados de seu guia peruano. Conversamos brevemente, peço uma foto, batem.
Quando, finalmente, começo a me preparar para a descida, vejo Maninho sentado sobre a primeira das pedras ao fim da trilha, contemplativo, não conseguindo esconder em seu semblante a satisfação pessoal da conquista, de ter ido além do que parecia ter sido seu limite. Vou até ele. Comemoramos, nos abraçamos. Ele então me mostra um vídeo que gravou assim que eu tinha iniciado a minha subida. Fez para a família. Explicou que ele estava ao meio, eu tinha subido e o Gauchinho havia ficado mais abaixo. E que talvez, em uma visita futura, ele conseguiria terminar o trajeto. Que nada, lá estava ele, naquele mesmo dia, desfrutando das delícias proporcionadas pela natureza, pela engenhosidade inca mas, principalmente, pela perseverança individual. Não só individual, o aspecto motivacional também é realçado. Tanto eu quanto ele acabamos recebendo o ânimo que faltava do mesmo e simpático casal peruano, que também mais abaixo passou por ele, comentou que haviam me visto, que ele tinha que prosseguir.
Por volta das 17 começamos a descida, como previsto. A ideia era chegar de volta ainda com luz, mas foi com luz ainda maior, neste caso nos olhos, que encontramos Gauchinho subindo. Mais de duas horas depois do início da trilha, lá estava ele se aproximando do seu fim. Um passo por vez, com muita luta, perseverança, confiança e uma pitadinha de falta de juízo. Não tinha como, não havia outro pensamento que não o de acompanha-lo até o topo. A meia-volta que tanto eu quanto o Maninho ensaiamos na direção contrária, acabou sendo dada de volta ao pico, lado a lado com o nosso guerreiro amigo. E não houve momento mais mágico em toda a viagem do que o que aconteceu quando os três alcançaram, juntos, o topo de Putucusi.
Estava eu a frente, Gauchinho um pouco atrás com o Maninho ajudando-o a subir, apoiando as suas costas, compartilhando o peso dos passos. Porém, lembro-me bem, assim que chegamos próximos ao topo, parei e disse: “Vá, Gauchinho, avance você na frente”. O terreno ali já era quase plano, fim da trilha inclinada. Ele passou por mim, viu a bela cidade de Machu Picchu decorando a montanha frontal, ajoelhou-se, ergueu as suas mãos aos céus, chegou a dizer “Obrigado, Senhor” e o que disse depois já não era compreensível e isso não tinha importância. Chorava, arrebatado. Chorava sem parar e houve uma energia palpável naquele momento, que uniu a nós três de uma maneira especial. Maninho também não conteve as lágrimas. Momento forte, momento para ser vivido e não narrado, como tento aqui fazer. Momento de magia, uma cena linda observar aqueles dois amigos tão queridos, tão próximos, amigos que foram também amigos de meu pai, ali, juntos, vivendo uma experiência tão rica. A superação pessoal, o fato de ter conseguido ir muito além de seus limites, novamente um caso de perseverança e confiança talvez expliquem o que houve muito mais do que qualquer misticismo que porventura pudesse ser associado ao local. O fato é que Gauchinho chorou e suas lágrimas abençoaram o solo de Putucusi de uma maneira imaculada. Aquele foi um choro da purificação, da confirmação, de união.
Um detalhe curioso é que eu faria essa viagem ao Peru, inicialmente, sozinho. Tão sozinho quanto cheguei inicialmente ao topo da montanha. Depois Maninho integrou-se às minhas férias e juntos definimos o roteiro da viagem. Ele chegou depois de mim, tal qual na escalada daquele domingo. Gauchinho entrou ao final, de última hora, com os detalhes já mais ou menos definidos, fixados. Mas tão bem-vindo quanto foi bem-vinda a sua chegada triunfal ao pico da montanha. Ao final, um de cada vez, vencemos o desafio juntos e juntos partimos, muito além das 17, morro abaixo. As escadas verticais foram descidas, degrau por degrau, com muito cuidado e medo, já praticamente sem luz.
E no dia seguinte, a maior atração de Machu Picchu foi oferecer uma vista diferente, sob uma nova perspectiva do Monte Putucusi, o ponto alto da nossa viagem ao Peru.
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