Totalmente Demais – Farelos em Série
Durante a pandemia de coronavírus em 2020 a Rede Globo interrompeu as gravações de suas novelas que estavam no ar e resgatou antigos sucessos para preencher as lacunas na programação em horário nobre. Eu não assistia novelas há décadas mas, um pouco por falta de opção e outro pouco por curiosidade, resolvi acompanhar duas delas.
Coube à novela Totalmente Demais, de Rosane Svartman e Paulo Halm, que nem é tão antiga assim já que foi ao entre 2015 e 16, preencher o horário reservado a histórias mais leves, das 19h, aquele que termina logo antes do fatídico, ainda mais nestes tempos de covid e Bolsonaro, Jornal Nacional.
A novela e seus atores foram premiados no Brasil à época e a trama foi indicada ao Emmy, gerou até um spin-off em forma de comédia (Totalmente Sem Noção Demais), focando no núcleo do comediante Hélio De La Peña – que como o advogado Zé Pedro não convencia em papel mais sério.
Mas do que se trata esta novela? Basicamente gira em torno da revista de moda Totalmente Demais, dirigida pela inescrupulosa Carolina Castilho (Juliana Paes) e patrocinada pela empresa de cosméticos Bastille, cujos donos são Germano (Humberto Martins) e Lili(ane) (Vivianne Pasmanter). Carolina tem uma relação de idas e vindas com o agente de modelos Arthur (Fábio Assunção) e em um desses momentos fazem uma difícil aposta que pode valer seus futuros profissionais: Arthur se diz capaz de transformar a menina de rua que sobrevive vendendo flores, a protagonista da novela Eliza (Marina Ruy Barbosa), na vencedora de um concurso da revista, a escolha da Garota Totalmente Demais. Fechando o núcleo principal ainda temos Jonatas (Felipe Simas), rapaz que também faz seus bicos na rua para ajudar a mãe e seus irmãos e que se apaixona por Eliza.
Mas como em todas as novelas, as coisas vão se transformando. Parece apenas a história da Cinderela descoberta pelo príncipe encantado mas ambientada no mundo da moda? Parece. Mas tem muito mais à medida que as tramas e subtramas e seus vários núcleos vão sendo apresentados. E como tem histórias paralelas – e pouco aprofundamento nelas – em uma novela diária com 136 episódios.
Em meio a estes assuntos, há alguns relevantes para provocar discussão no público e na sociedade em geral, papel importante das telenovelas já que proporciona amplo alcance e material para o debate sem termos que falar de nós mesmos, usando os personagens e suas ações para nos colocarmos naquelas situações e assim podermos refletir sobre certo e errado, algo fundamental em um país com tão pouca assistência social e educacional. Eu claramente podia imaginar pessoas, em suas casas, julgando se Gilda (Leona Cavalli), a mãe de Eliza, estava certa ou não em perdoar o marido abusador porém pai de dois de seus filhos.
Falando neste trecho, a trama fala sobre abuso sexual já que Eliza vai morar na rua para fugir de seu padrasto Dino (Paulo Rocha), mas aborda também homofobia já que o assistente de Arthur, Max (Pedro Sanábio), tem momentos em que é perseguido por ser gay e tem dificuldades de se assumir para a família; acessibilidade, já que Wesley (Juan Paiva), jovem irmão de Jonatas e aspirante a atleta sofre um acidente e fica paraplégico, preso a uma cadeira de rodas; a dificuldade em adoção misturada com o renascimento do HIV, já que no final da trama Carolina se redime adotando um jovem, negro e aidético.
Mas nada disso, talvez exceto pela situação de Wesley e de Carolina, ocupam espaço maior na trama, que prefere fazer seus personagens servirem de interesse romântico uns para os outros – são várias e previsíveis as trocas de casais que vão se empilhando no decorrer da novela – ou então trazer outras maluquices como o trabalhador honesto e que cria sozinho suas duas filhas e que eventualmente fica rico ganhando na loteria (recurso também usado na outra reprise, a das 20h, na novela Fina Estampa), ou a moça que não se adapta à vida de riquinha e simula sua morte, voltando depois de anos fingindo amnésia – essa parte especialmente ofende a inteligência dos espectadores.
São tantos assuntos abordados que é até impressionante como houve fluidez e ritmo, sustentando o interesse pelos vários meses em que a novela ficou no ar. Deve-se muito ao bom elenco que defende muito bem seus personagens, a começar pela ruiva Marina Ruy Barbosa que revela-se talentosa e sensível. Do núcleo principal sinto que apenas Simas deixa um pouco a desejar, em uma interpretação unidimensional, rasa e um tanto sem carisma.
Outro ponto alto são os alívios cômicos. O já citado Max, muito bem vivido por Sanábio, e suas tiradas e quebradas de cabeça arrasaram, né Brasil? A pouco inteligente – e muito ambiciosa – Cassandra (Juliana Paiva), também concorrendo no concurso, rendeu bons e inusitados momentos como as esquetes em que tentava ser “descoberta” como modelo e as suas diversas confusões com citações clássicas por ter dificuldade em entender a língua portuguesa e o raciocínio lógico. Ailton Graça com seu Florisval, Hélio de La Peña com seu Zé Pedro e o casal Glória Menezes e Reginaldo Faria, interpretando Stelinha e Maurice, os pais de Arthur, que ajudam a elitizar Eliza preparando-a para as provas do concurso, também renderam sorrisos, ainda que seus personagens não estivessem lá só para isso.
Se tivesse que dar uma nota de 0 a dez para Totalmente Demais seria algo como sete, passa de ano, mas não encanta como poderia justamente por preferir seguir o confortável caminho de só tatear os assuntos que mereciam e abraçar tranquilamente a sua essência de comédia romântica – com direito a muitas citações dos clássicos que a inspiraram.
Farelos saborosos:
- Eliza e Jonatas terminarem juntos, depois da postura machista e da falta de confiança de Arthur no episódio no Uruguai envolvendo o fotógrafo Rafael (Daniel Rocha)
- O elenco jovem que mandou muito bem, principalmente Marina Ruy Barbosa e Juan Paiva
- A caracterização de Dino, machão e abusador com mulheres, mas um covarde diante de outros homens como o xerife e comparsa Peçanha (Rodrigo Rangel)
- O breve romance entre Rafael e Lili, destravando uma visão positiva na personagem que vivia pelos filhos mas havia experimentado a morte da filha, o filho que ela admirava tanto envolvido em um crime e o casamento se desfazendo incluindo a descoberta de uma antiga traição do marido.
- A redenção de Carolina através da adoção
Farelos de desgosto:
- As citações literárias de Arthur, que soavam artificiais demais e provocavam um efeito hipnótico um tanto bizarro nas ouvintes
- As constantes trocas de casais no melhor estilo ninguém-é-de-ninguém já são irritantes, mas o pior é que os roteiristas abusaram do recurso de “estou fazendo alguma coisa próximo do meu interesse romântico, escorrego, caímos um sobre o outro, surge o clima, nos beijamos”… nossa, isso aconteceu MUITO. E esse recurso é muito fraco.
- Diálogos expositivos em excesso… e os horríveis recursos narrativos que já são assinatura de nossas novelas: personagem falando sozinho (para explicar algo ao público mas que não faz sentido dentro da história) e os malditos diálogos em que alguém fala algo importante e sai de cena, deixando o outro personagem refletindo sozinho…
- Personagens que claramente não precisavam existir, como a Lorena Domingos (Adriana Birolli), rival profissional de Carolina; Sofia (Priscila Steinman) em sua passagem “pós-mortem”; Sueli (Danielle Winits), que tenta ganhar a confiança das filhas que abandonou para abocanhar parte do dinheiro ganho pelo ex-marido