Usando nossas mentiras como um termômetro

Tenho amigos que dizem ser sinceros o tempo todo. Eu também digo isso. Mas, no fundo, sei que às vezes minto ou omito. E sei que ouço muitas mentiras e que não ouço muitas omissões. A justificativa para isso, mais ou menos bem aceita, é que a dita mentira social é necessária. Que por vezes mentimos para não magoar. Que por vezes mentimos ou omitimos para não piorar uma situação já complicada. Muitas vezes mentimos para tentar ajudar. Muitas vezes mentimos para tentar resolver um problema. É verdade, acredito que em muitos casos isso se aplique. Mas acredito também que pode virar hábito e comodismo.

Pois bem, na linha provocativa que tem caracterizado certas posturas recentes que tenho adotado, acho que tem muita mentira nessas justificativas para se mentir. Na maior parte dos casos, mentimos por nós mesmos, egoistamente. Mentimos para levar vantagem ou para evitar uma desvantagem. Mentimos pois temos medo da reação à verdade. Mentimos, mas mentimos muito, pois achamos que nossas mentiras não serão descobertas. Mentimos para termos justificativas para coisas que a verdade não justificaria. Para coisas sérias e também para coisas bobas, cotidianas. Mentimos tanto que mentimos para nós mesmos, ao dizermos que as mentiras são necessárias. Creiam-me, não são. Ao menos não na quantidade absurda em que as empregamos.

OK. Até aqui o discurso está mais ou menos impessoal. À parte certos casos em que ouvi mentiras e consegui descobri-las, não posso dizer com que frequencia mentem para mim. Mas posso dizer que, pessoalmente, mentir me faz mal e eu evito fazê-lo. De certa forma acho que é por isso que não me sinto muito confortável quando sou confrontado com perguntas muito diretas (e quem é?), pois sei que vou responder sinceramente. Um amigo disse que também age assim e que uma vantagem clara disso é que as pessoas sabem exatamente como ele pensa. É verdade, por mais dolorido que a verdade possa ser, temos que sempre compará-la com a dor que a mentira causará sendo ela descoberta ou não. Não se enganem, mesmo uma mentira com pernas longas tem seu impacto negativo.

Meu ponto é bem simples: mentir é comum, usual, corriqueiro. Mas até que ponto esse repertório e apetite que temos para mentir não pode ser usado como um termômetro para o auto-conhecimento? Será que não podemos mesmo falar a verdade? Proponho então o seguinte desafio, toda vez que mentirmos nos perguntarmos: “por que eu preferi mentir neste caso”? Acho que vamos nos surpreender muito com as respostas, se fizermos a pergunta a nós mesmos de maneira sincera. Curioso isso, proponho auto-sinceridade para entender a mentira derramada.

Acredito que podemos sim usar as nossas mentiras como termômetro de nossa “febre” interior, do quanto não nos conhecemos de fato. Qual fatia das mentiras será justificada como uma “camada de adaptação social”, ou ainda simplesmente como um de nossos “jeitinhos”, ou de nossa “proteção ao sentimento alheio” ou, mais sinceramente, como defesa de nossos interesses mais egoístas. Será que ao nos darmos conta de que às vezes mentimos, ocultamos ou floreamos para parecermos mais “legais” ou “descolados” pode ser por uma falta de confiança em nós mesmos e em nossos atributos reais? Será que ao nos darmos conta de que às vezes mentimos, ocultamos ou floreamos para evitarmos que descubram que fizemos algo que julgamos não será bem aceito, estamos fazendo um pré-julgamento quanto às reações das pessoas e criando para nós uma máscara que será dificil portar? Eu acredito que praticamente toda mentira, quando analisada friamente, pode e deve ser evitada. Pode ser substituída ou pela verdade ou por um “prefiro não falar a respeito”.

Para finalizar esse farelo, volto ao caso do “acharmos que não seremos descobertos”. Aqui a nossa essência se revela não apenas nas mentiras que somos capazes de conjurar. É inacreditável o que somos capazes de fazer sob a segurança do anonimato ou sob a confortável proteção que a impunidade nos oferece. Sem que as pessoas envolvidas saibam sobre o que falamos, podemos fantasiar realidades diferentes, forjar fatos, tecer opiniões que nos ajudem mesmo sabendo que vão totalmente contra a verdade. E para esse tipo de comportamento, talvez um termomêtro ainda mais preciso do que o das mentiras seja necessário para indicar corretamente nosso estado de saúde. Viver de maneira saudável passa também por rever certos hábitos sociais.

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