Vou de Táxi – Vol. 1

Vou de Táxi – Vol. 1

Morar em uma cidade e ter que ir até outra duas vezes por semana – ou até mais vezes do que isso – cria uma rotina em que táxis e rodoviárias – e não aeroportos, já que a distância entre as duas cidades é pequena e eu estou optando por não ter um veículo – fazem parte do seu cotidiano muito mais do que seria esperado. Neste momento, estou exatamente na poltrona 39 do ônibus Cometa que liga Campinas a São Paulo, escrevendo a coluna da semana. E essa já é uma das outras vantagens que essa opção traz: durante o trajeto obrigatório, por não ter que dirigir, posso ler, estudar, pensar, escrever, ouvir podcasts ou música.

Uma outra característica interessante desta minha rotina são os bate-papos com os taxistas. Tenho tido contato com uma multidão difusa e heterogênea de pessoas: homens e mulheres, geralmente entre os vinte e poucos e os trinta e poucos, funcionários, na faixa econômico-social chamada classe C. É curioso como são ávidos por diálogos, por contato humano. Trabalham com uma máquina levando-a a disputar espaço, em negociações nem sempre saudáveis, com outras máquinas em pistas com obstáculos, para transportar uma ou mais pessoas do ponto A ao ponto B. E, em muitos casos, são também elas tratadas como máquinas pelos passageiros. Recebem, no máximo, ordens para seguir esse ou aquele caminho ou o horário limite para alcançar o destino.

Eu, em geral, encontro um assunto corriqueiro para puxar papo e esse gatilho é suficiente para ouvir, dali para a frente, praticamente um monólogo do começo ao fim do trajeto. Ao menor sinal de interesse por o que quer que seja, os taxistas falam, falam, falam e falam. Na época da retaliação da polícia com a morte de várias pessoas aqui em Campinas, em janeiro, me deparei com um reacionário a favor da pena de morte, execução sumária e que via muitas vantagens no período militar. Devia ter a minha idade, isto é, vivido o fim da ditadura e não ter a menor ideia de como foi duro esse período. Em tempos de Rachel Sheherazade não é de se espantar que ideias fascistas começam a ganhar força e se popularizar. Pode parecer incrível, mas eu acho que a vida de bandidos também merece respeito – e punição justa.

Em dias de chuvas, ouço histórias sobre enxurradas que cobriram o veículo, ou como o táxi teve que ficar parado esperando o fluxo de água diminuir para resguardar a vida dos passageiros, uma imensa responsabilidade, nas palavras da própria taxista. Em um terceiro exemplo, um breve comentário sobre o tempo de espera, que eu julgava exagerado, para que o táxi chegasse para me apanhar deixou-me impressionado com o tratado sobre a incorreta distribuição dos praticamente mil carros que atendem a cidade, com uma concentração em certas zonas e o total desabastecimento em outras, o que leva a grandes deslocamentos para certos atendimentos e a um tempo médio mais alto do que se deveria. Nesta mesma linha, mas em São Paulo, já cruzei com um senhor que martelou teses e mais teses de como resolver o nó que é o trânsito da capital paulista, dizendo que “é lógico que os engravatados lá na prefeitura não resolvem nada, eles não tem vivência no trânsito, tem que pegar gente que vive disso… não tô dizendo eu não, tem que ser esses com 40, 50 anos de táxi. Pega eles e ouve eles para ver se não aparecem boas ideias do que tem que fazer para melhorar”. São pensamentos interessantes e até engraçados em sua ingenuidade.

Por outro lado, é interessante perceber como os taxistas são politizados – no sentido de se interessarem por política. A amostragem à qual tive acesso no último mês e meio tem, em geral, uma postura reacionária. Tudo está errado, não se pode confiar em ninguém, principalmente políticos, tudo vai de mal a pior e não há solução no horizonte. Só explodindo tudo e começando de novo. E seguem sólidas argumentações sobre o papel do PCC na sociedade paulista (“são os verdadeiros governantes”), soluções miraculosas para o trânsito e muita, mas muita indignação.
Há também a rendição à tecnologia. Taxistas que ficam parados no ponto de táxi esperando pela sua vez no rodizio e que fazem 4 ou 5 corridas por dia são apenas aqueles que já estão aposentados, que mantém a atividade para não incorrerem no ócio. Já não é de hoje os taxis recebem chamadas de atendimento pelo rádio, mas hoje em dia o atrativo é a conexão direta com o passageiro, via aplicativos de celular. Semana passada, chamei um táxi desta maneira e fui surpreendido por um taxista já de meia-idade, nos seus cinquenta e tantos, falando da facilidade de um aplicativo em comparação ao outro e citando problemas com a “versão do Android” para justificar sua preferência. Prático e encantador.

Porém a história mais fascinante ocorreu em Campo Grande. Apanhei o táxi para ir ao aeroporto. Estava com o Whatsapp, aplicativo para trocas de mensagens no celular, aberto e ele emitiu seu característico sinal sonoro. Foi o que bastava para ouvir uma história íntima e incrível. Alfredo – vou chama-lo assim – vira-se para mim e começa a falar. Disse que trata-se de uma invenção fantástica, que aproxima pessoas. E então, Alfredo dá um passo na direção de sua intimidade e diz “Mas também pode causar problemas”. A frase era vaga, mas eu dou corda. Pergunto “por quê?” e ele emenda, já ansioso, que é casado, que ama muito sua esposa, mas que tem uma amante… e que fala sempre com ela pelo WhatsApp. Uma vez que Alfredo conseguiu associar sua vida amorosa a alguma coisa relacionada à minha entrada no carro, o diálogo não mais cessou. A amante estava gravada sob o nome Rubens, mas se chamava Rúbia. Era um antigo amor de adolescência. Também é casada. Se reencontraram há alguns anos. E estão vivendo essa relação de consumação de um amor perdido, em negligência dos riscos de se perder um outro amor – talvez menos carnal, com menos fogo, mas mais sólido, familiar e duradouro. Pergunto, curioso, se ele ou Rúbia pensam em abandonar seus casamentos. Já chegando ao aeroporto, ele responde sorridente: “Eu quero demais, mas ela não, ela quer ficar como está”.

Pedaços de intimidade como esse estão esperando os passageiros dos táxis Brasil afora, basta entrar no veículo disposto a não apenas ir do ponto A ao ponto B, mas de no trajeto criar e percorrer uma ponte que vai de você àquele ser humano ali conduzindo o veículo, trabalhando, servindo, com suas opiniões, suas histórias, seus anseios. Pode ser que este seja o atalho que faltava para te levar onde você jamais esteve. Abraços e até o volume 2.

Publicado originalmente aqui.

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