Espaço público
Uma rodoviária. Um piano. A bela trilha de Amélie Poulain coroando as ondas sonoras daquele espaço público, sendo tocadas por uma jovem acompanhada por seu amigo, que pacientemente virava as páginas do caderno de partituras. Ela, creio eu, deve ser aluna de alguma escola de música da cidade. Ele, talvez seu irmão ou namorado. Ambos não devem ter ainda chegado aos 20 anos. O local deve ter sido escolhido para a prática talvez por ser o instrumento caro e não tão acessível em sua própria casa ou na casa dos amigos. O elitismo do piano misturado ao popular tumulto e confusão dos viajantes. Não sei de quem foi a iniciativa de colocarem o belo instrumento (foto que ilustra o post) na rodoviária de Campinas, mas sei que eu aprovo e bato palmas de pé à iniciativa.
Enquanto tomava meu café da manhã e esperava o horário de partida de meu ônibus, ouvia e via a jovem praticando. Um erro aqui, outro acolá que em nada diminuiam o poder da música nem a admiração pela delicadeza com que a garota a executava. Ali, com o pão de queijo na mão, comecei a pensar em como pequenos gestos – como a instalação de um piano numa rodoviária – podem transformar a experiência das pessoas com o espaço público. Acredito ter visto ali algo novo. As pessoas olhando para o público como o de TODOS ao invés de, como é hábito no brasileiro, pensarem como o de NINGUÉM.
Pode parecer bobagem mas isso faz uma grande diferença e mostra, a meu ver, a maturidade social de um povo. O famoso “jeitinho brasileiro”, esse gene maldito que nos faz querer sempre levar vantagem individual ao invés de pensarmos em uma vantagem coletiva, comunitária, mais abrangente, universal e sistêmica. É comum, fora do Brasil, a auto-regulação. Transporte público sem cobradores – cabe a cada um pagar e validar seu ticket. Gentileza sincera uns com os outros. Coisas simples como esperar as pessoas que estão dentro do vagão do metrô descerem antes de entrar ou dar o lugar na fila a uma pessoa mais idosa ou a uma gestante, sem ficar resmungando pela sua “falta de sorte”. E, também, jogar lixo no lixo e separar o que é reciclável do que é orgânico; respeitar os outros veículos no trânsito e, principalmente, os pedestres e ciclistas; levar seus cachorros para passear em coleiras e preparados para recolher suas fezes; devolver o dinheiro nos casos em que o caixa do supermercado por engano te entrega o valor errado a mais – exatamente como você faz quando te devolvem a menos.
Enfim, essas pequenas coisas mudam totalmente a forma como experimentamos a vida. De um lado o egoísmo pleno e o nosso umbigo em lugar de destaque e do outro mudanças pequenas que fazem com que a cabeça levante um pouco e a gente possa ver o outro… os outros, que vivem e convivem conosco em nosso lar, em nosso prédio, em nossa cidade, em nosso país. Pode parecer um devaneio, mas ver um piano em uma rodoviária me trouxe um alento. Ninguém ali parecia interessado em depredar, vandalizar ou roubar o caro instrumento. Ele estava lá e era de TODOS. Era meu pois apreciava a música ali tocada. Era da garota que ali praticava seus dotes. Era de todos nós e isso ficou ainda mais claro quando a menina decidiu ir embora e um senhor levantou-se de onde estava sentado, tomou o assento de frente ao piano e começou a tocar, no inicio um pouco acanhado e aos poucos ganhando confiança, uma canção que depois vim a reconhecer como Roberto Carlos.
Viajei, voltei, viajei de novo e o piano lá está, muitas vezes solitário, outras tentas prestando-se a ser o condutor de belas melodias, outras prestando-se a ser descoberto por crianças que ainda iniciam suas aventuras musicais. Mas mais que tudo isso ele está lá imóvel e feliz, esperando que todos nós possamos usufruir de seus encantos, pois ele não é de nenhum de nós, mas sim de todos nós. Espero e torço para que cada vez mais isso seja realidade e que o espaço público seja tratado com esse mesmo respeito e que cada um de nós, individualmente, usemos nossa individualidade não para termos alguma vantagem mas para garantirmos que todos a tenhamos. A vantagem de vivermos em um mundo melhor.
Publicado originalmente aqui.
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