Rabugentos S/A

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O voo era de baixo custo, classe turística. Apesar do destino ser a bela Lisboa, o motivo da viagem era um curso, negócios, trabalho. O horário também não era o ideal, ao invés do tradicional voo noturno, que permite uma noite de sono razoável e uma melhor adequação ao fuso na chegada, sai as 16h, o que fazia com que eu tivesse que passar longas horas acordado na poltrona apertada antes de, de fato, adormecer… o que só duraria algumas poucas horas, visto que o voo de 10h até a escala em Madrid duraria até as 2h da manhã no horário brasileiro. Para completar, como a Air Europa, companhia aérea que eu experimentava pela primeira vez, é “low cost”, eles cobram até mesmo o fone de ouvido necessário para assistir a uns filmes ou ouvir música durante o voo.

Parece ruim? Eu estava feliz. Adoro viajar, não me incomodo se não tiver como dormir adequadamente e estou disposto a pagar por serviços em um voo – até mesmo os mais básicos – se isso significar que o preço do bilhete será de fato mais econômico do que os das companhias que já cobram pelos serviços com o preço embutido no valor da passagem. Ao menos eu tenho a escolha de tomar ou não o serviço. E em companhias como a Easy Jet, por exemplo, nas quais tudo é cobrado, ao menos eu posso tomar um café Starbucks e comer um belo sanduíche quente ao invés de ter que me contentar com amendoins, quando estou de fato com fome.

O título do 171 de hoje, na verdade, não se refere a mim mas sim a uma senhora que estava sentada logo atrás de mim. Ela puxou papo com o casal que sentava ao nosso lado, apresentou-se como uma “organizadora de viagens”, ou algo assim ligado ao Turismo. Perguntou a eles tudo: de ondem eram, onde estavam indo, onde iam ficar, se estavam gostando do voo. Uma entrevista que, acordado, desperto e ainda sem fones, tive que acompanhar. Mas a coisa começou a ficar irritante pois a senhora mostrou-se uma tagarela de primeira. Falava descontroladamente, queria atenção, não deixava o casal em paz. Para mim, era nítido que eles mudaram de simpáticos e receptivos, ao início do papo, para respostas evasivas, curtas e caras mais fechadas à medida que o interrogatório prosseguia.

Quando, de fato, o diálogo foi substituído por um monólogo, é que a tal rabugentice da velha senhora ficou notória. Quanta amargura para alguém que tem o que é para muitos o trabalho dos sonhos: viajar, desfrutar de outras culturas. Lá estava ela desdenhando da companhia aérea, dizendo nunca ter sido tão mal atendida e tratada, usando o velho e babaca trocadilho do “aerovelhas” para referir-se às funcionárias que não tem nenhuma obrigação de ser jovens, mas sim de cuidar da segurança do voo e, secundariamente, dos serviços de bordo. Falou mal de colegas de trabalho suas que não estavam lá, falou mal de pacotes turísticos, disse, ao desembarcar, que um ônibus para levar as pessoas do avião para o terminal de desembarque é algo “medieval” e uma série de outras opiniões balizadas, profissionais. Para que? Não faço ideia, talvez quisesse atenção, talvez quisesse desabafar, talvez estivesse tendo um dia ruim, talvez quisesse mostrar através de tanto conhecimento das mazelas de quem viaja que tratava-se de uma ótima profissional… ok, melhor parar por aqui, já estou alucinando.

O fato é que a velha senhora conseguiu transformar o fone de ouvido de algo útil em algo essencial à minha sanidade no voo. Cheguei ao meu destino, já estou trabalhando e não paro de pensar nela. Como pode, meu Deus, como pode? E o triste é que a Rabugentos S/A continua de vagas abertas e a fila de recrutamento é longa.

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